A retirada sensata e atrasada de Joe Biden da corrida eleitoral tem apenas um senão. Seu protecionismo de altos gastos nunca terá seu dia do julgamento nas urnas. A “Bideconomics“, se é que vamos dar um nome tão moderno a um programa tão antiquado, parecia destinada à derrota no dia 5 de novembro. Se nada de valor viesse de uma vitória de Donald Trump, pelo menos haveria o seguinte consolo: demoraria um bom tempo para os democratas voltarem a demonizar os mercados e o comércio exterior como atalho para ganhar votos.
De qualquer modo, eles deveriam parar de fazer isso. Sessenta por cento dos americanos querem que Kamala Harris se livre do plano econômico de Biden ou o altere de forma “importante”. Não é difícil entender o motivo, embora os liberais — dado o vigor econômico geral do país —finjam certa confusão infantil a respeito. Durante quase todo o mandato de Trump, o crescimento dos salários superou a inflação. No de Biden, isso não ocorreu de forma consistente até 2023. Ele tem motivos atenuantes de sobra para explicar o desempenho, como uma pandemia mundial e uma guerra. Ainda assim, sua conta de gastos públicos o implica muito mais na alta dos preços do que outros líderes mundiais durante o período. Isso já seria motivo suficiente para Kamala se desvincular dela.
Mesmo que a inflação nunca tivesse disparado, a Bideconomics ainda poderia ter sido um problema político. Para entender por que, vale a pena voltar a algumas máximas políticas que os democratas praticamente cunharam nos anos 1990.
Aqui está uma. Políticas que são populares de forma isolada podem ser impopulares em sua somatória. Ganhar um cheque pelo correio do governo federal é puro deleite. Um cheque somado a uma explosão de obras de infraestrutura, a uma cruzada contra abusos de preços das empresas, a um ataque contra as gigantes tecnológicas e a alguns outros gestos paternalistas começa a cheirar a demasiado zelo por parte do Estado. Os eleitores ouvem o acorde completo, não as notas isoladas que o compõem. De outra forma, a política seria absurdamente fácil: bastaria empilhar ideias que agradam o público uma em cima da outra.
Em segundo lugar, faz diferença quem propõe o quê. Os republicanos podem sair imunes se propuserem um Estado forte porque os eleitores confiam que um partido de direita não vai exagerar contra os ricos por fervor doutrinário ou animosidade de classe. Existe algo que se chama “permissão”. Os democratas não a têm. (Ao contrário do que acontece na questão do crime, onde Kamala pode, e deve, endurecer sua linha e não correria o risco de enervar os eleitores indecisos.)
Some esses fatores e a Bideconomics teria enfrentado problemas eleitorais em qualquer era, a não ser em uma em que os eleitores desejassem um Estado intervencionista. E aqui está o cerne da questão. Será que estamos vivendo em tal momento? Será que 2020 foi uma virada à esquerda no consenso público, como foi 1979/1980 na direção oposta? Será que a pandemia revelou uma frustração pré-existente com o “neoliberalismo”? Caso positivo, Kamala deveria se comprometer a prosseguir o projeto estatista de seu chefe.
Mas eu duvido. Tal ponto de virada dialético sempre pareceu algo que os comentaristas querem ver como realidade mais por vontade deles. Na véspera da pandemia, a confiança econômica dos EUA estava em seu ponto mais alto desde a virada do milênio. A tendência mundial na política não tem sido contrária a este ou aquele programa, mas contra quem estiver no governo. E poucas eras têm uma identidade ideológica clara. (No mundo rico, o neoliberalismo não impediu que o gasto social do Estado fosse maior como proporção do PIB em 2005 do que em 1980.) Se há um líder de centro-esquerda mundo afora que entende o sentimento ambíguo da população, é Keir Starmer, que tem os números parlamentares para virar o Reino Unido de ponta-cabeça, mas sabe que os ganhou sob a premissa de que não ousaria fazê-lo.
Em três oportunidades neste jovem século, os progressistas sentiram uma reorientação à esquerda no clima intelectual: no próprio ano de 2020, no desastre financeiro de 2008 e — as pessoas esquecem — no 11 de setembro, quando o heroísmo dos trabalhadores do setor público foi saudado em certas áreas como o início de uma época pró-governo. (Ah, sim, é mesmo.) Essa baboseira teleológica já seria ruim o suficiente na voz de especialistas. Um partido que disputa uma eleição não deveria se permitir nem chegar perto dela.
Além desse argumento eleitoral para aposentar a Bideconomics, há motivos mais elevados. Trabalhadores industriais, se os democratas forem sinceros em admitir os apuros pelos quais esse grupo passa, também são consumidores que sofrem com os preços, muitas vezes de produtos importados. E o paternalismo pode ser uma carta de convocação para os lobistas, daí o atual artifício de isentar as gorjetas de impostos. (Nevada, onde os sindicatos do setor de hospitalidade têm influência, é um Estado indefinido neste ano.)
Acima de tudo, no entanto, a Bideconomics não tem resposta para a crise em formação nos EUA: uma dívida pública que ambos os partidos preferem ignorar. Os subsídios a setores comerciais têm um custo inicial, mesmo se presumirmos, como não se deve, que em parte se autofinanciam graças a um crescimento futuro maior.
Mas a substância pode esperar. Novembro vem primeiro. Se entendi corretamente, a atitude dos democratas é a seguinte: derrotar Trump é uma questão existencial para os EUA, mas a Bideconomics, execrada pelos eleitores, é sagrada. Cabe a Kamala o ônus de cortar a metade final dessa sentença.
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Fonte: Valor Econômico

