Uma das vantagens do presidente Joe Biden abrir caminho para Kamala Harris foi que ele pode se concentrar na presidência. Dois meses depois, há poucas evidências de que sua agenda mais livre teve grande impacto. Em outra época, Biden poderia ter tido o luxo de se despedir de forma mais tranquila ao deixar os holofotes. Mas o Oriente Médio está à beira de uma guerra e a Ucrânia caminha para um inverno perigoso. As chances de eleição de Kamala e o próprio legado de Biden estão ameaçados.
Este não é o momento de evitar decisões difíceis. No entanto, é exatamente isso que Biden está fazendo. Destas, a mais urgente é o espectro crescente de uma guerra aberta entre Israel e o Hezbollah. A resposta de Biden aos ataques preventivos autodeclarados do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu ao Hezbollah seguiu até agora o mesmo curso que em Gaza. Biden acredita que quanto mais próximo estiver de Israel, mais influência terá sobre o que o país faz. Não há evidências de que isso funcione com Netanyahu.
As ações de Biden nos 11 meses e meio desde o massacre de 1,2 mil israelenses pelo Hamas em 7 de outubro seguiram um padrão deprimentemente familiar. Biden fornece a Israel todas as armas e o apoio internacional de que ele precisa; Netanyahu ignora devidamente os esforços de Biden para intermediar um cessar-fogo e modificar as táticas militares das Forças de Defesa de Israel.
A definição de insanidade atribuída a Albert Einstein é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar um resultado diferente. Ninguém acredita que Biden é louco. Mas ele está preso a um padrão que é previsivelmente contraproducente.
O princípio de um “quid pro quo” é que você recebe algo em troca. Com Netanyahu, Biden parece estar preso a um “quid pro nihilo” perpétuo (dar algo em troca de nada).
A última aposta questionável de Biden é aceitar o argumento de Netanyahu de que Israel precisa “escalar para desescalar” no sul do Líbano. Em termos simples, isso significa que, quanto mais duros forem os ataques militares de Israel contra o Hezbollah nos próximos dias, maior a probabilidade de o grupo apoiado pelo Irá recuar. Mas o Hezbollah tem um grande arsenal, que inclui estimados 200 mil foguetes. É a mais poderosa força não estatal do mundo. Quanto maior o número de civis mortos no Líbano, maior será a pressão para o Hezbollah retaliar em grande escala, mesmo que isso represente o eventual risco de um suicídio.
No entanto, Biden está mantendo o Plano A. Na segunda-feira, ele pediu moderação a Israel, anunciando ao mesmo tempo que vai aumentar a presença militar dos EUA no Oriente Médio. Isso oferece a Israel uma camada extra de proteção para ignorar as exortações de Biden. Do ponto de vista de Kamala Harris, a postura arriscada de Netanyahu é preocupante. Se Israel ocupar uma faixa do sul do Líbano para criar uma zona de proteção contra a ameaça do Hezbollah – como alguns no entorno de Netanyahu estão sugerindo -, isso poderá mudar o clima eleitoral nos EUA. Preços mais altos do petróleo afetariam o sentimento do consumidor americano, anulando parte do efeito estimulante do corte de meio ponto porcentual na taxa de juros feito pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano.
Nem é preciso dizer que Donald Trump tem interesse em incentivar Netanyahu. O líder israelense também faz pouco segredo de seu desejo por uma vitória republicana. Até onde Netanyahu iria para ajudar Trump? Descobriremos nas próximas semanas. As hesitações de Biden em relação à Ucrânia são menos relevantes para o que acontecerá em 5 de novembro. Mas uma vitória de Trump poderá ser existencial para a Ucrânia. O presidente russo Vladimir Putin também tem interesse em uma vitória de Trump, embora tenha provocado a mídia ao afirmar que apoia Kamala.
A defesa da Ucrânia e da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) por Biden é o seu legado mais valioso na política externa. Seu objetivo tem sido dar à Ucrânia as ferramentas para ela se defender sem começar a Terceira Guerra Mundial. Mas a Ucrânia não poderá manter sua posição se não receber os meios para atacar dentro do território russo. Isso, Biden se recusa a fornecer. Como disse recentemente um analista, a Ucrânia pode derrubar algumas das flechas que chegam, mas não pode atingir o arqueiro.
Um número crescente de aliados dos EUA, liderados pela Polônia e o Reino Unido, vêm pressionando Biden para que ele dê permissão à Ucrânia para usar artilharia fornecida pelos EUA para atacar dentro do território russo. Mas Biden está com medo de que isso cruze as linhas vermelhas nucleares de Putin. Como resultado, a Ucrânia está lutando uma guerra contra o segundo maior exército do mundo em uma grande desvantagem. Mesmo que Kamala vença, seria apenas em janeiro, no mínimo, que os EUA mudariam sua posição.
Parafraseando TS Eliot, a maioria das carreiras políticas não termina com um estrondo, mas com um gemido. Se a guerra estourar no Oriente Médio e Trump vencer, os lendários 50 anos de Biden na vida pública dos EUA terminarão com um estrondo e também com um gemido. Certamente esse não é o legado que ele deseja.
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Fonte: Valor Econômico

