Há poucas semanas, um júri de Manhattan considerou o ex-presidente Donald Trump culpado de 34 crimes graves. A decisão ratificou uma ideia que é o alicerce da democracia americana: ninguém, nem mesmo um ex-presidente, está acima da lei. A decisão de segunda-feira da Suprema Corte em Trump vs Estados Unidos parece minar esse princípio.
Em uma decisão de 6 a 3 relativa às reivindicações de imunidade de Trump nas alegações de que ele tentou anular o resultado das eleições de 2020, o tribunal ampliou radicalmente a noção de imunidade presidencial. Afirmou que um presidente não pode ser processado criminalmente por exercer deveres “constitucionais essenciais”, como comandar as Forças Armadas, e que ele tem “imunidade presumida” por atos “oficiais”.
A opinião da maioria, redigida pelo presidente da Suprema Corte, o juiz John Roberts, sugere que o “oficial” pode se aplicar a tudo que o presidente faz com as agências sob sua jurisdição. Um presidente, afirma a corte, não tem imunidade em atos “não oficiais”.
Os tribunais inferiores terão agora que traçar os limites entre o que são atos oficiais e não oficiais. A decisão da Suprema Corte quase certamente adia qualquer julgamento sobre o caso de interferência nas eleições para além do pleito de novembro. Os eleitores ficam então privados de saber o resultado, e Trump poderá anular o caso se for reeleito. A corte também alterou para sempre o sistema dos EUA — de uma maneira que não só o regresso de Trump, mas também outros futuros presidentes poderão tirar partido.
Em outra época, essa decisão poderia ser vista menos como um prenúncio perigoso e mais como um assunto para discussões acaloradas. Desde o caso Nixon vs Fitzgerald de 1972, a corte deixou claro que um presidente está imune à responsabilidade civil por decisões tomadas no cargo. A corte agora ampliou esse princípio, argumentando que um presidente “enérgico e independente” não deve ser dissuadido de tomar medidas necessárias devido a preocupações com possíveis processos criminais após o fim do mandato.
A conduta criminosa parecia improvável para a maioria dos presidentes anteriores, que, apesar das suas falhas, geralmente procuraram ocupar o “lugar de liderança moral” que Franklin Delano Roosevelt afirmou ser o cerne do cargo. Mas observamos agora até que ponto um ocupante da Casa Branca pode corroer as normas democráticas. O primeiro mandato de Trump, apesar de alguns sucessos econômicos limitados, foi caracterizado por um desrespeito pelo Estado de Direito e pelo sistema eleitoral, evidenciados por dois julgamentos de impeachment e pelos diversos processos criminais contra ele e sua antiga equipe.
Um segundo mandado promete ser ainda mais incendiário. Trump prometeu ser um “ditador” em seu primeiro dia no cargo e praticamente prometeu exercer os imensos poderes do cargo para punir inimigos políticos. Ao ampliar a imunidade presidencial, a Suprema Corte na verdade concedeu carta branca a Trump — e a todos os futuros presidentes.
Com os tribunais agora incapacitados de responsabilizar um presidente pela maioria das ações tomadas no cargo, a decisão transfere essa responsabilidade para o Senado e a Câmara dos Deputados. Mas, como mostram os impeachments fracassados de Trump, a atual legislatura polarizada dos EUA revelou-se mal equipada para conter um demagogo.
Trump poderá perder em novembro e um tribunal de primeira instância ainda poderá considerá-lo responsável por atos “não oficiais” relacionados às suas tentativas de anular a eleição. Mas a decisão da Suprema Corte provocou um dano duradouro. “A Revolução Americana” — que Ralph Waldo Emerson chamou de “o tiro ouvido em todo o mundo” — ajudou a impulsionar um movimento internacional para longe da tirania e em direção à democracia e à responsabilização. Ao priorizar uma Presidência “enérgica” em detrimento de uma Presidência responsável, os juízes conservadores da corte destruíram um pilar fundamental do sistema americano.
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Fonte: Valor Econômico

