Com sua ofensiva em Kursk, a Ucrânia não ultrapassou apenas as fronteiras russas. Também ultrapassou os limites traçados por Washington.
Desde o início da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, os EUA têm reiterado que seu objetivo é defender o território ucraniano e sua sobrevivência como Estado soberano. Qualquer insinuação de que a guerra pudesse ser levada para dentro da Rússia era considerada perigosa.
Na esteira da incursão em Kursk, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, menosprezou as restrições impostas pelos EUA aos esforços de guerra ucranianos, condenando o “conceito ingênuo e ilusório das chamadas linhas vermelhas em relação à Rússia, que dominou a forma como alguns parceiros avaliam a guerra”. Essa forma de ver agora “desmoronou”, disse o presidente ucraniano.
Será que desmoronou mesmo? A diferença entre a cautela em Washington e a disposição de assumir riscos em Kiev é reflexo não apenas de uma diferença de avaliação sobre até que ponto é possível pressionar Vladimir Putin. Também reflete uma diferença sutil nos objetivos de guerra.
No início do conflito, o presidente dos EUA, Joe Biden, definiu dois objetivos para seu governo. O primeiro era apoiar a Ucrânia. Mas o segundo era evitar a terceira guerra mundial. Se obrigados a escolher entre os dois objetivos, os EUA claramente escolheriam o segundo.
No entanto, a Ucrânia está lutando por sua sobrevivência. Ela aceitaria o envolvimento direto dos EUA em uma guerra com a Rússia. De acordo com um livro recente de David Sanger, Biden até sinalizou a seus assessores que Zelensky poderia estar tentando deliberadamente arrastar os EUA para uma terceira guerra mundial.
Como resultado, o apetite por risco de Washington e o de Kiev são diferentes. Os EUA têm sido firmemente cautelosos quanto ao tipo de armas que fornecem à Ucrânia. Quando os mísseis de longo alcance Himars foram fornecidos pela primeira vez à Ucrânia, o governo Biden impôs limites sobre até onde eles poderiam ser disparados. Foi apenas em maio que Washington deu permissão para que armamentos fornecidos pelos EUA fossem usados contra alvos ligeiramente dentro da Rússia. Essas proibições ainda estão em vigor, apesar da forte pressão ucraniana por sua retirada.
A diferença na tolerância ao risco dos EUA e a da Ucrânia se reflete dentro da Europa. Países que estão próximos da linha de frente e se sentem diretamente ameaçados pela Rússia — como Estônia e Polônia — têm feito pressão para que a Ucrânia receba armas mais avançadas e tenha mais liberdade para usá-las. A Alemanha tem sido consistentemente muito mais lenta para agir.
Os ucranianos há muito reclamam que a cautela de seus aliados mais poderosos faz com que eles sejam obrigados a lutar com uma mão amarrada nas costas. A Rússia é livre para atacar o interior profundo da Ucrânia, mas a Ucrânia é proibida de revidar.
Tanto o governo ucraniano quanto o dos EUA sustentam que o governo Biden não foi informado previamente da ofensiva em Kursk. Embora seja de claro interesse dos EUA negar envolvimento direto no planejamento de um ataque em solo russo, isso parece ser verdade.
Com a ofensiva em Kursk, os ucranianos pegaram uma folha da cartilha usada por Israel — realizaram uma ação militar que não foi aprovada em Washington. A suposição tanto da Ucrânia quanto de Israel é que, se a ação for bem-sucedida, receberá aprovação retroativa dos EUA. Se der errado, os EUA ajudarão a lidar com as consequências.
Por agora, há um otimismo cauteloso em Washington sobre a ofensiva em Kursk — embora ainda existam dúvidas se as forças de Kiev conseguirão manter o território conquistado e resistir aos ataques russos no leste da Ucrânia.
É improvável, contudo, que mesmo um sucesso ucraniano leve os EUA a jogar a cautela pelos ares. Os americanos ainda estão determinados a evitar um conflito direto com a Rússia e ainda levam a sério a ameaça de um conflito nuclear.
Os EUA sabem que Putin fez ameaças públicas de usar armas nucleares e que a Rússia tem treinado de forma constante seu uso em exercícios militares. Em 2022, interceptações de inteligência dos EUA captaram conversas frequentes e, às vezes, até detalhadas, entre oficiais militares russos sobre o uso de armas nucleares.
É possível que algumas dessas conversas tivessem o intuito de serem ouvidas. Ainda assim, essas ameaças públicas da Rússia e conversas privadas foram levadas a sério o suficiente pelos americanos a ponto de Jake Sullivan, assessor de segurança nacional de Biden, advertir a Rússia sobre “consequências catastróficas” caso ela recorresse ao uso de armas nucleares.
Os americanos mencionam esse alerta de Sullivan para refutar a ideia de que simplesmente cederam diante das ameaças russas. Em vez de respeitar as linhas vermelhas da Rússia, os EUA e seus aliados vem ultrapassando-as aos poucos cada vez mais — testando até onde Putin pode ser pressionado por meio de uma escalada gradual.
Alguns analistas ocidentais acreditam que a ofensiva em Kursk agora desmascarou claramente ameaças nucleares de Putin. De acordo com Phillips O’Brien, da Universidade de St. Andrews, “sempre se presumiu que [invadir a Rússia] era a linha vermelha derradeira para o uso de armas nucleares — e os ucranianos estão marchando […] diretamente sobre ela.”
Os EUA, porém, não acreditam que a linha vermelha derradeira tenha sido cruzada de forma bem-sucedida. Os assessores de Biden continuam a pensar que, se Putin acreditar que seu governo está à beira de uma derrota total, os russos poderiam recorrer ao uso de armas nucleares. Quando os ucranianos reclamam que seus aliados têm medo da ideia de vitória, eles têm argumentos válidos.
26/08/2024 13:36:35
Fonte: Valor Econômico

