Às vésperas da conferência de ministros da OMC, é o que defende Victor do Prado, que foi diretor do Conselho e do Comitê de Negociações Comerciais da entidade por 10 anos, até março. Ele é sênior fellow do Núcleo de Comércio Internacional e Economia Global do Cebri, professor e membro do Conselho do “World Trade Institute” da Universidade de Berna (Suíça) e professor convidado da SciencesPo (Paris). Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Com a nova situação geopolítica, múltiplas crises, o que esperar da conferência de ministros da OMC?
Victor do Prado: As conferências ministeriais são como marcos numa estrada. Indicam uma direção e quanto ainda tem de se caminhar pela frente. Essa conferência ministerial, como as passadas, reflete o seu tempo. E ocorre agora num momento muito complexo, de várias tensões e crises no sistema internacional. Temos a covid, que não passou totalmente e que deixou muitas cicatrizes na economia mundial. Tem o conflito na Ucrânia, com repercussões que vão muito além da Europa, com questões de segurança alimentar, inflação. E tem uma crise climática da qual não dá para fugir dessa urgência também. Tudo isso é muito complicado para se ter resultados fantásticos numa conferência ministerial. O simples fato dela ocorrer já é um sucesso.
Valor: Alguns analistas acham que a insegurança global pode causar esvaziamento da OMC. Qual sua visão sobre isso?
Prado: Esse tipo de narrativa é muito comum, mas temos que pensar duas vezes antes de aceitá-la. A OMC, e em geral a cooperação internacional, é mais necessária do que nunca. No fundo é irracional, quase um contrassenso, termos todas essas crises com repercussões mundiais e se ter uma narrativa de menos cooperação internacional.
Valor: Mas na prática o temor crescente é de fragmentação da economia em blocos, por exemplo.
Prado: É verdade, apesar de termos de olhar não só as narrativas, mas também os números. Muita gente fala por exemplo de “friendshoring”, pela qual só vai fazer comércio com os países que são amigos, com as preocupações de governos e empresas com a segurança com as cadeias de abastecimento. Sim, as empresas têm essa preocupação, mas elas se movem de maneira cuidadosa. Relações comerciais foram construídas durante décadas, e antes de retirar um investimento e colocar em outro país, talvez o que a empresa faz é reorganizar sua cadeia de valor, mas não eliminar totalmente seu supridor. Há mais preocupação com segurança, com resiliência de fornecedores. Mas quando ouço empresários e as cifras do comércio, não vejo algo que justifique a profundidade da narrativa de fragmentação, pelo momento. Temos que tomar muito cuidado com profecias que se autorrealizam, de que necessariamente haverá uma fragmentação. Conversei agora há pouco com pessoas de Cingapura, EUA, China sobre essa nova iniciativa americana Indo-Pacific Economic Framework for Prosperity (Ipef). Se você olhar os países ali, é um grupo interessante, com os EUA, Índia, Indonésia, Austrália, Japão, Vietnã, Tailândia. São países com valores muito diferentes e pode-se dizer que são amigos. Mas temos de ter muito cuidado em definir o que é amigo em relações internacionais, porque em relações internacionais não há amigos, há interesses. Esse tipo de iniciativa não encaixa muito bem com essa narrativa de que os americanos só vão fazer comércio com quem partilha seus valores.
Valor: Mas isso mostra também que a Ásia se torna cada vez mais a região econômica dominante, não?
Prado: É verdade, mas não é uma tendência nova. Ainda que haja imensos problemas na China, a China espirra e o mundo fica gripado. É complicado tanta instabilidade na China, mas não dá para se descolar da China de um momento para outro. E não é só na China, é na Ásia, com muitos investimentos americano e europeu concentrados em outros países da região. Eu estou muito curioso para ver qual vai ser o futuro dessa iniciativa, com a Índia. A Índia fazia parte das negociações do RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership), que não inclui os EUA e inclui a China. A Índia negociou com muito entusiasmo, mas na última hora pulou fora, alegando que não era de interesse do país. Era um acordo que tinha concessões comerciais, com mais abertura. É quase um contrassenso, quando se conhece a atuação da Índia na OMC (protecionista).
Valor: Como você vê a postura do Brasil nesse cenário global?
Prado: É curioso, porque de um lado o Brasil perdeu muito de seu “soft power”, de seu grande ativo de simpatia no mundo e do qual a diplomacia brasileira se aproveitou muito. Perdeu a partir do governo de Jair Bolsonaro, porque toda a agenda ambiental, climática, a identificação que se faz do mundo, verdadeira ou não, é com [Donald] Trump, com [Vladimir] Putin e líderes com tendências mais autocráticas. Isso é muito ruim para a imagem do país e para as relações políticas em geral. De outro lado, do ponto de vista de política de comércio exterior, o Brasil tem sido muito mais construtivo e aberto do que se poderia esperar de um governo desse tipo. Há várias medidas na área comercial tomadas para modernizar o país. A posição do país em relação ao Mercosul é muito acertada, para flexibilizar a Tarifa Externa Comum (TEC), ter maior grau de abertura. Agora, o Brasil é um país que continua precisando aumentar o valor adicionado nas suas exportações. Continuamos a ser um grande exportador de commodities. O Brasil pode se beneficiar de maneira pontual, de curto e médio prazo. Mas não deve apostar nisso. Seria uma miopia do Brasil. Em termos de estratégia de desenvolvimento e de política de comércio exterior, eu esperaria algo mais inteligente.
Valor: Alguns analistas dizem que o Brasil se tornou uma grande fazenda.
Prado: Enquanto os preços das commodities estão altos, tudo bem. Mas isso nos deixa em flutuação muito desconfortável. E também ficamos muito dependentes da China, num cenário geopolítico complexo. Uma das grandes vantagens que o Brasil sempre teve foi a diversidade de pautas de exportação e importação e de parceiros comerciais. Ainda tem relações importantes com os EUA, com a Europa, mas não deixa de saltar aos olhos o crescimento do comércio com a China. Não estou dizendo que isso é ruim, mas que precisamos observar isso com cuidado.
Valor: Voltando à OMC, você esteve por 10 anos no centro das discussões. Para onde vai a reforma para que a OMC não se torne irrelevante?
Prado: A OMC tem de estar em sintonia com o mundo. E da maneira como ela existiu até recentemente, estava em sintonia com aquele mundo da queda do Muro de Berlim, do pós-Guerra Fria. Esse mundo já não existe. O que se tem feito, sem que as pessoas percebam, é uma gradual flexibilização em negociação e na estrutura da organização, para ela ficar em sintonia com o mundo atual. Em Doha, foi lançada (em 2001) a Rodada do Desenvolvimento e havia a ideia do “pacote único”, em que todos os acordos seriam concluídos conjuntamente. Aquilo foi flexibilizado em 2011, e em 2013, com Roberto Azevêdo como diretor-geral da OMC, houve um primeiro acordo, de Facilitação de Comércio, depois sobre eliminação de subsídios à exportação de produtos agrícolas em Nairóbi, e um parágrafo na Declaração de Nairóbi em que alguns membros já não se sentem obrigados a seguir o quadro negociador da Rodada de Doha, e em 2017 em Buenos Aires o lançamento das iniciativas plurilaterais (participa quem quiser). Ou seja, a OMC há pelo menos dez anos vem se flexibilizando. Agora, até onde vai essa flexibilização é um ponto de interrogação. E é verdade que a questão do Mecanismo de Solução de Controvérsias (com os EUA bloqueando nomeação dos membros do Órgão de Apelação) é politicamente sensível, porque tem a ver com o relacionamento entre a China e os EUA, com o mundo de produção chinês e com o modo de produção capitalista. Os americanos deixaram de designar membros do Órgão de Apelação por uma razão que tem a ver com algo profundo, que é a relação entre o Estado e o setor produtivo dos países, e essa relação é de uma maneira capitalista e de outra maneira na China.
Valor: Podemos esperar uma OMC com velocidade variada para diferentes grupos de países, para os que querem avançar mais em abertura e outros não?
Prado: É isso, e não é totalmente estranho à história do sistema. Houve momentos em que foi preciso flexibilizar e permitir àqueles países que querem fazer novos acordos, que façam, e aqueles que não querem, não querem. Ou seja, é dar flexibilidade aos dois lados.
Valor: Alguns observadores já nem usam o termo protecionismo e sim de segurança nacional, para proteger os mercados. Em razão da rivalidade crescente entre os EUA e China, e agora com guerra na Ucrânia, esse é um risco de os países tentarem proteger seus mercados alegando segurança nacional?
Prado: Isso sempre foi um tabu na OMC e que se popularizou com Trump, que usou essa exceção que está prevista nas regras para impor tarifa adicional na importação de aço e alumínio. Desde que isso foi feito, há desenvolvimentos na OMC, inclusive um relatório de um comitê de investigação que diz que é preciso ter cuidado com esse tipo de instrumento. A OMC não foi feita para lidar com problema de segurança, que são para as Nações Unidas. É por isso que na OMC sempre se falou de deixar a parte de segurança como exceção para tempos de guerra. Acho mais importante são outras barreiras que têm a ver com segurança dos alimentos, de produtos industriais, medidas não tarifárias que pedem mais atenção dos membros.
Valor: Há um risco de termos uma “splinternet”, diferentes internets, com impacto forte no comércio eletrônico?
Prado: Já está acontecendo, e é um grande perigo. Meus amigos em Cingapura têm todos dois celulares, um com aplicativos chineses e outro com aplicativos ocidentais. É um exemplo dessa divisão da tecnologia e é uma tendência que pode ter custos altíssimos para todo o setor produtivo e para o consumidor. É a guerra dos dados.
Fonte: Valor Econômico

