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Num cenário em que o custo da saúde sobe três vezes mais do que a inflação e a inovação eleva os gastos, ao contrário do que ocorre nos demais setores, a indústria farmacêutica está sendo pressionada a compartilhar o risco dos medicamentos de alto custo – já há remédios de quase R$ 8 milhões no Brasil e de US$ 4,2 milhões nos EUA.
Outras drogas com esses patamares de valor vão surgir. As grandes farmacêuticas têm concentrado seus esforços no desenvolvimento de medicamentos para doenças raras e como o número de casos é pequeno, seu custo tende a ser sempre elevado. Ao mesmo tempo, não há volume suficiente de pacientes para o desenvolvimento de todas as três etapas de pesquisas clínicas, o que deixa algum grau de incerteza sobre sua efetividade.
“Se um medicamento de alto custo foi aprovado na fase 2 da pesquisa clínica e que, portanto, sua eficácia não está totalmente comprovada e quem paga é a sociedade, seja por meio do SUS ou saúde suplementar [planos de saúde], faz sentido as farmacêuticas compartilharem o risco”, disse o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“O compartilhamento de risco é um instrumento para ser adotado em situações de incerteza e seu pagamento é atrelado ao resultado”, explicou Denizar Vianna, secretário de ciência e tecnologia do Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta. Na época, Vianna desenvolveu um projeto piloto com essa ferramenta que tem servido de referência no Brasil.
Em outros países como Reino Unido, Espanha, Itália e Argentina já há acordos com a indústria. O pagamento de remédios de alto custo para as farmacêuticas é condicionado ao progresso clínico do paciente, em indicadores médicos pré-definidos. O caso mais emblemático é do Zolgensma, destinado à atrofia muscular espinhal (AME) do tipo 1 em crianças, desenvolvido pela Novartis e que, atualmente, custa R$ 7,9 milhões no Brasil.
Em 2022, o Ministério da Saúde e a Novartis assinaram um contrato de intenções para que esse medicamento seja ofertado no SUS. O valor atual é de R$ 6,2 milhões, na rede pública. Por esse acordo, o governo paga 20% no ato do procedimento médico e o restante em quatro parcelas anuais. Essa quitação é feita conforme a eficácia do medicamento. Ou seja, caso o paciente não evolua conforme as condições clínicas acordadas, a farmacêutica não recebe. Além disso, o acordo prevê cobertura do medicamento para bebês com até seis meses.
No entanto, essa negociação está parada e a cobertura na rede pública tem sido feita via judicialização. Entre janeiro de 2023 e agosto deste ano, a Justiça concedeu 86 liminares obrigando o SUS a fornecer o Zolgensma – totalizando um gasto de mais de R$ 500 milhões (sem considerar os honorários e custo do procedimento médico), segundo dados da Novartis.
No setor privado, as regras são outras. No caso do Zolgensma, o preço definido é de quase R$ 8 milhões, não há compartilhamento de risco e o limite de idade é ate dois anos (indicação que consta na bula do remédio). Ainda segundo a Novartis, entre janeiro de 2023 e agosto deste ano, as operadoras atenderam 20 pacientes que precisaram do Zolgensma – o que totaliza despesas de cerca de R$ 160 milhões. Nesse volume, há poucos casos de judicialização, uma vez que a cobertura é obrigatória.
A desigualdade de condições entre o setor privado e o SUS é motivo de queixa das operadoras de planos de saúde. A Fenasaúde, entidade que representa o setor, reclama da falta de estudo de impacto econômico dos medicamentos aprovados no SUS e que entram automaticamente no setor privado. “Atualmente, 10 % das operadoras têm receita anual inferior ao valor de uma dose única do Zolgensma, de R$ 7,9 milhões. Muitas delas quebram”, disse Vera Valente, diretora-executiva da Fenasaúde.
A Novartis informou que faz parcelamentos para as operadoras de menor porte. “Considerando que se trata de uma única dose, o custo do tratamento acaba sendo menor quando comparado a outras drogas que demandam uso frequente”, disse Mario Marchesi, diretor médico da Novartis, destacando os investimentos que a indústria faz em pesquisa e desenvolvimento. Em geral, as farmacêuticas destinam entre 10% e 20% de sua receita em P&D.
Uma legislação de 2022 passou a permitir que remédios, exames e outros procedimentos médicos aprovados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), órgão do Ministério da Saúde que define o que pode ser realizado na rede pública de saúde, sejam automaticamente cobertos por todos os planos de saúde. Além disso, há uma onda de liminares obrigando a cobertura de medicamentos ainda sem aprovação no Brasil. “O Brasil é a Disneylândia para a indústria farmacêutica”, disse Paulo Rebello, presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), há cerca de dez dias, em evento em São Paulo.
Alexandre Fioranelli, diretor da ANS e médico da Santa Casa de São Paulo, é a favor da criação de uma agência reguladora que faça avaliação de medicamentos e novas tecnologias que atenda tanto o SUS quanto o setor privado. “Defendo que seja feita uma avaliação única para todos os brasileiros, independente se público ou privado”, disse.
De 2022 para cá, com a mudança na legislação, 101 novos procedimentos (drogas, exames, etc) passaram a ter cobertura obrigatória pelos planos de saúde. Deste volume, 53 inclusões ocorreram via análise da ANS e Cosaúde (comissão formada por representantes dos Ministérios da Saúde e Fazenda, conselhos médicos e operadoras), sendo que 75% delas são medicamentos e a maior parte destinada a tratamento oncológico. Outras 37 ocorreram de forma automática porque já eram cobertas no SUS e outra fatia refere-se a aprovações extraordinárias como da vacina da Mpox, que ocorreu recentemente. A entrada de novas drogas e tecnologias no rol de procedimentos obrigatórios dos convênios médicos agora é realizada mensalmente, antes acontecia a cada dois anos.
Fioranelli, diretor da ANS, explicou que “as avaliações para aprovar o que pode ou não ser coberto pelos planos de saúde levam em consideração uma metodologia, usada internacionalmente, que analisa indicadores de saúde baseados em evidências e custo efetividade”. Essa metodologia é conhecida como Avaliação Tecnológica em Saúde (ATS). O Sindusfarma argumenta que, em outros países com sistema de saúde privado semelhante ao Brasil, a saúde suplementar brasileira “ainda está muito atrasada, tanto na incorporação de novas tecnologias.”
A Interfarma, entidade que representa a indústria farmacêutica, e a Novartis informaram defender novos modelos para tornar o setor de saúde sustentável, mas dizem que há dificuldades em implementar um modelo de compartilhamento de risco com o setor privado porque ao contrário da área pública, em que o governo é um único cliente, na saúde suplementar, há quase 700 operadoras. “Teria que analisar caso a caso, não é simples”, afirmou Renato Porto, presidente da Interfarma. O diretor médico da Novartis disse que um caminho seria negociar com as entidades e ANS. A agência reguladora, por sua vez, informou que vêm incentivando acordos entre a indústria e operadoras.
O Ministério da Saúde não atendeu a demanda da reportagem.
Fonte: Valor Econômico