Polícia Federal apura simulação de vendas de medicamentos para receber recursos federais
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Em uma plataforma de comércio eletrônico, vende-se uma farmácia em Itaquaquecetuba, região metropolitana de São Paulo. Com apenas alguns cliques, é possível comprar a loja por R$ 110 mil. Esse valor, no entanto, pula para R$ 230 mil se o interessado quiser comprar também o CNPJ que dá acesso ao sistema do Farmácia Popular, programa que entrou na mira de investigadores da Polícia Federal (PF) nos últimos meses por suspeitas de fraudes, em um momento de fragilidade do governo federal, abalado pelo escândalo do INSS.
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A propaganda do estabelecimento paulista não é isolada. Em Curitiba, outro anunciante ressalta que está disponibilizando uma “oportunidade única” de uma farmácia consolidada há 13 anos no mercado. Ele destaca o cadastro no Farmácia Popular, o que ampliaria o “potencial de vendas” e fidelizaria “ainda mais os consumidores”. O investimento para “fazer parte de um setor sólido e em expansão” está na faixa dos R$ 150 mil.
Embora a compra e venda desses estabelecimentos não configure crime, a facilidade na aquisição de CNPJs de farmácias cadastradas no Farmácia Popular, combinada ao acesso ilegal à base de dados de consumidores e a falta de mecanismos de controle mais rígidos se tornaram um prato cheio para os criminosos, que aproveitam as brechas do sistema para drenar os recursos bilionários do programa criado em 2004, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Os alertas vindos de diversas frentes acontecem em um momento de expansão do programa. Depois de perder fôlego durante o governo Jair Bolsonaro (PL), o orçamento do Farmácia Popular para este ano é de R$ 4,2 bilhões. Desde março, os 41 medicamentos do programa também passaram a ser distribuídos totalmente de graça pelas farmácias credenciadas.
Além disso, o Ministério da Saúde anunciou no início do ano a abertura de credenciamento para novos estabelecimentos localizados em municípios ainda não atendidos pelo programa. A expectativa é a universalização do Farmácia Popular, chegando a todo o território nacional. Até agora, 746 novas farmácias foram credenciadas em 527 cidades.
R$ 2,5 bi de desvios
Desde dezembro, três operações foram deflagradas para combater fraudes. As apurações ocorrem em um momento em que o Palácio do Planalto tenta evitar a instalação de uma CPMI para investigar descontos com fraudes no INSS.
Além das ações da PF, investigadores procuraram o Ministério da Saúde para debater como aumentar a fiscalização do programa. A primeira conversa aconteceu durante a gestão da ex-ministra Nísia Trindade, mas o grupo já se reuniu com a equipe de Alexandre Padilha, no comando da pasta desde março.
Por ora, as investigações não envolvem servidores, como ocorreu no escândalo do INSS, que teve a cúpula afastada sob suspeita. No caso do prejuízo aos aposentados e pensionistas, a estimativa é que o rombo possa chegar a R$ 6,3 bilhões, montante repassado para as entidades sindicais entre os anos de 2019 e 2024.
No Farmácia Popular, uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) nos estabelecimentos credenciados no programa entre 2015 e 2020 revelou um esquema de desvios de cerca de R$ 2,5 bilhões. Segundo o órgão, algumas farmácias declararam vendas fictícias, fazendo com que o governo federal repasse recursos aos proprietários sem que o medicamento de fato tivesse chegado até algum consumidor.
‘Modus operandi’
Esse foi o principal “modus operandi” encontrado pela PF durante as investigações. Na operação deflagrada em dezembro, uma das suspeitas seria responsável pela compra de farmácias que eram repassadas a “laranjas”. Os estabelecimentos, então, faziam simulação de vendas de medicamentos para receber repasses do programa. As fraudes ultrapassariam os R$ 20 milhões.
Em fevereiro, os investigadores miraram uma organização criminosa que abriu pelo menos 28 farmácias para desviar recursos do programa e financiar atividades ligadas ao tráfico de drogas. Dias depois, o alvo foi um único estabelecimento, localizado em um pequeno município paranaense, que sozinho gerou um prejuízo de mais de R$ 800 mil aos cofres públicos.
Responsável por esse último caso, o delegado Vinícius de Paula Conceição conta que a investigação começou a partir de uma denúncia anônima. Ao longo da apuração, constatou-se que das quatro farmácias cadastradas no programa em Francisco Alves (PR), o estabelecimento investigado recebia sozinho mais da metade dos recursos destinados pelo programa ao município.
Além disso, também foram realizadas entrevistas com os supostos pacientes que tiveram os CPFs usados indevidamente pelo estabelecimento, e nenhum deles tinham as doenças para as quais os medicamentos supostamente vendido eram indicados. “Apesar de muitos serem idosos, uma condição clínica como Parkinson não é de fácil esquecimento”, ressalta o relatório da PF.
Para o delegado, a operação demonstrou que é preciso aumentar a fiscalização nas farmácias que fazem parte do programa, especialmente as que se encontram em cidades pequenas e regiões remotas. Ele aponta, por exemplo, que poderia haver algum alerta em relação aos CPFs que registram a compra de “superdoses” de determinado medicamento.
Essa também é a opinião de representantes do Conselho Federal de Farmácia (CFF). De acordo com o secretário-geral Gustavo Pires, a entidade tem mantido interlocução com o Ministério da Saúde e se colocou à disposição para discutir soluções para evitar fraudes.
Segundo ele, uma das propostas é que o conselho poderia ser acionado para ir “in loco” verificar o que acontece em farmácias que registrem um salto muito grande nas vendas, em curto período de tempo. Além disso, Pires defende que haja mais travas na hora em que uma pessoa vai buscar o remédio, já que hoje uma mesma receita vale por seis meses. Uma das ideias é limitar a quantidade de retiradas nesse período.
Estrutura precária
Servidores do Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus), responsável por fiscalizar internamente o programa, também apontam fragilidades do Farmácia Popular. De acordo com um deles, que pediu anonimato, o órgão está sucateado e com o número reduzido de servidores. Hoje, há cerca de 420 pessoas para auditar os mais de 31 mil estabelecimentos cadastrados pelo governo. No passado, o órgão já contou com mais de mil servidores.
Em nota, o Ministério da Saúde ressaltou que não há qualquer ilegalidade no processo de transferência de titularidade de farmácias já credenciadas no programas, desde que observados os parâmetros exigidos pelo governo. “A coordenação-geral do programa Farmácia Popular realiza ações contínuas de monitoramento para identificar eventuais alterações cadastrais não comunicadas formalmente e, se necessário, tomar as medidas cabíveis.”
Também disse que a pasta voltou a realizar a renovação anual do credenciamento dos estabelecimentos, que havia sido interrompida em 2018. O recadastramento está sendo realizado em parceria com a Caixa Econômica e segue aberto até o fim de maio.
De acordo com a pasta, desde 2023, foram suspensas preventivamente 2.084 farmácias e descredenciadas 501. Como resultado, R$ 7,9 milhões foram restituídos à União. O ministério afirmou ainda que irá retomar as auditorias “in loco” do Denasus, que estavam suspensas desde 2021. Também restituiu 25 indicadores de monitoramento, abrangendo variáveis como a frequência de retirada de medicamentos e a quantidade vendida, ponderada pela população de cada município.
Em relação à defasagem no número de pessoal do órgão, disse que houve uma queda dos servidores do Denasus em decorrência da reforma previdenciária do governo de Michel Temer, pois parte dos servidores aproveitaram para se aposentar. O cancelamento de um concurso de 2016 também contribuiu para essa redução.
A pasta informou que está em curso um processo seletivo para recomposição do quadro e que pretende retomar a discussão sobre a carreira de auditor federal do Denasus.Por fim, o Ministério da Saúde destacou que colabora ativamente com a Polícia Federal nas investigações em curso.
Fonte: Valor Econômico