Se a mudança de governo nos Estados Unidos traz otimismo para o diretor de investimentos (CIO) da Legacy Capital, Felipe Guerra, a situação no Brasil permanece bastante ruim do ponto de vista dos ativos financeiros, o que leva a casa a concentrar suas posições no mercado americano. Na avaliação do executivo, o Brasil está no limite de um regime de “organização ou de desorganização”.
O primeiro cenário contemplaria uma desaceleração moderada da economia, que poderia trazer para baixo as expectativas de inflação e uma melhora na conta corrente do país. No entanto, para Guerra, a probabilidade de o governo permitir o esfriamento da atividade um ano antes da eleição presidencial é muito baixa, o que deve fazer com que a inflação permaneça elevada até uma mudança de governo, cenário que não deve contribuir para uma retirada dos prêmios de risco nos ativos domésticos.
Valor: O que espera para o governo Trump?
Felipe Guerra: Estamos com uma visão bem otimista para o cenário global, especialmente para os Estados Unidos. Basicamente, vemos uma economia americana que tem uma resiliência grande e a alta dos juros não tem se traduzido em uma desaceleração relevante. As empresas seguem com lucros sólidos e os bancos deram início à temporada de balanços com resultados muito bons. Por outro lado, há uma queda sincronizada da inflação global. Não foi tão rápida quanto todos esperávamos, mas está acontecendo. O último dado de inflação nos EUA teve um qualitativo muito bom. A parte de habitação começou a dar sinais claros de normalização. Isso permite que exista mais espaço para que outros BCs cortem os juros sincronizadamente: Canadá, Europa, Inglaterra. O Fed deu uma pausa, mas a chance de cortar é bem maior do que a de voltar a subir juro. É um pano de fundo bem favorável para os mercados.
Valor: Como isso se reflete nos portfólios da Legacy?
Guerra: A tecnologia é um tema central e muito importante do nosso portfólio. Somos muito otimistas com o tema. Há um grande investimento no setor que ajuda a dar sustentação ao crescimento americano. O desenrolar da inteligência artificial (IA) vai ser central nos próximos anos. Somos investidores em “cloud” [tecnologias de armazenamento em nuvem] desde 2018 e continuamos enxergando ventos muito positivos para o setor. Há algum ceticismo no mercado com os retornos nos investimentos em tecnologia, mas somos bem mais otimistas. Vamos ser surpreendidos pela velocidade e pelo avanço da tecnologia e isso ter grande impacto na produtividade.
Vamos ser surpreendidos pela velocidade e pelo avanço da tecnologia”
Valor: Como as mudanças de governo afetam o cenário?
Guerra: Acreditamos que sai um governo com uma mentalidade de um mix de políticas econômicas ruins para um governo que deve priorizar a desregulamentação, os cortes de impostos e de gastos. Estamos muito otimistas, talvez como nunca estivemos, com o governo Trump e todo esse arcabouço. Parece que a pauta econômica deve caminhar na direção correta. A economia americana se mostrou resiliente e sólida mesmo com um cenário político muito ruim nesse passado recente. Achamos que o mercado exagera muito o peso do efeito político na economia americana. Havia um governo com tendências de esquerda e com os juros subindo bastante e mesmo assim houve muita resiliência. Imaginamos agora com um juro mais baixo e sem um governo atrapalhando.
Valor: Quais são os riscos?
Guerra: Vejo mais como ruído do que como fundamento. Claro que tem uma ansiedade para ver impacto e a velocidade das propostas. Mas, para mim, é uma volatilidade. É verdade que a ordem dos fatores pode alterar o produto. Se começar com mais gasto fiscal em uma economia muito grande, pode provocar um desequilíbrio adicional. Mas haverá pesos e contrapartidas. Os cortes de impostos devem ser contrabalançados com corte de gastos, a priori, pelo que entendemos da agenda do [Elon] Musk. Há uma incerteza com relação à intensidade e ao timing, mas é menos importante do que a direção estrutural e os efeitos devem ser menores do que o mercado pensa. O mercado superestima o que o mundo político pode fazer para desequilibrar a economia dos EUA.
Valor: Qual é o cenário-base para as propostas de Trump?
Guerra: Esperamos que ele venha com tarifas, mas que devem ser utilizadas como ferramenta de negociação. Deve acrescentar tarifas em uma intensidade menor no primeiro momento e depois ameaçar adicionar outras ao longo do caminho. Deve ser muito parecido com o que foi no governo anterior. Para a economia americana, acredito que o efeito seja limitado. Para as economias periféricas o efeito pode ser maior. Temos alguma cautela com a economia europeia, chinesa, Brasil, Canadá e México.
Valor: Os EUA devem seguir crescendo, mas sem uma pressão inflacionária forte?
Guerra: O aumento de produtividade permite crescer sem gerar inflação e a tecnologia vai gerar essa opção para os EUA. Avaliamos que a questão fiscal, com a equipe econômica que o Trump está desenhando, pode ficar mais balanceada. Há um outro ponto importante, há cerca de 30 senadores republicanos que são “fiscal hawks” [conservadores no aspecto fiscal]. Dificilmente vão apoiar uma expansão de gastos sem contrapartida. Para aprovar os cortes de impostos, deve vir corte de gastos.
Valor: Quais são as posições do portfólio internacional da Legacy neste momento?
Guerra: Seguimos comprados em bolsa, principalmente na parte de tecnologia, e comprados em dólar. Acreditamos que a combinação destes dois fatores, tarifas e tecnologia, deve seguir dando muita força ao dólar. O mundo inteiro tem necessidade de comprar ‘streaming’, tecnologia de armazenamento na nuvem, chips… Os EUA acabam virando um aspirador de pó de dólares do mundo inteiro que busca comprar tecnologia. Isso vai dar uma sustentação à conta corrente americana e deixar o dólar forte contra todas as moedas. As tarifas devem gerar ruído, mais medo e mais força para o dólar. Estar comprado em tecnologia e em dólar é o cerne do nosso portfólio.
EUA acabam virando um aspirador de pó de dólares do mundo inteiro“
Valor: Possuem posições em juros americanos?
Guerra: Nossa opinião é que nos próximos três a nove meses, o Fed não vai subir e nem cortar os juros. Outros BCs podem acabar se mexendo. A possibilidade de o Fed voltar a elevar os juros caiu na semana passada. Como posições secundárias, gostamos de aplicar [apostar na queda] dos juros em outras economias.
Valor: E no Brasil?
Guerra: Continuamos muito leves em Brasil. Temos acompanhado uma aleatoriedade muito grande nos ativos. Em um dia sobem muito, outro caem bastante. Tem se tornado um mercado quase que inoperável, que vai perdendo liquidez. Os investidores vão perdendo o interesse pelo país. Vemos melhores oportunidades fora do país.
Valor: Do ponto de vista macroeconômico, qual é o cenário?
Guerra: Esperamos um cenário muito inflacionário no Brasil. A inflação deve ficar por volta dos 6% neste ano e se manter elevada até 2027. Basicamente temos um governo que gasta muito e atrapalha a condução da política monetária pelo Banco Central. Foi um erro muito grande ter colocado a isenção do Imposto de Renda junto com o pacote de gastos, porque colocou uma perspectiva ruim para a frente. Acaba sendo uma medida inflacionária, já que ela, na prática, transfere dinheiro de agentes que têm propensão a poupar a agentes que tem propensão ao consumo. O BC está subindo juros, mas sabemos que temos um encontro com o populismo à frente. Vemos isso pela dificuldade da ancoragem das expectativas. O governo parece completamente perdido, há muitas idas e vindas nas medidas anunciadas, a exemplo do que foi o episódio do Pix. O governo está muito desorganizado e a Fazenda parece perdida.
Valor: O que poderia gerar alguma melhora nas perspectivas para o cenário doméstico?
Guerra: Seria um cenário que o governo para de atrapalhar. O BC sobe os juros, a economia desacelera e as coisas ficam mais organizadas. Isso seria positivo. A outra opção é o governo ficar apertando botões aleatoriamente para tentar reaquecer a atividade econômica. Assim, a economia vai inflacionar muito e não vai adiantar nada. Esse cenário faria com que as coisas ficassem bem caóticas e desorganizadas. Deveríamos partir para um cenário de desaceleração desejada.
Valor: Após o estresse dos últimos dias de 2024, o mercado parece ter se acomodado em novos níveis em 2025…
Guerra: Estamos em uma fronteira entre um regime de organização ou desorganização. Como não há notícias de Brasília nestes dias e há um hiato de informação, o mercado tenta entrar no modo de organização. Mas, estamos ali no limite e me pergunto se vale a pena se envolver com isso. O governo vai deixar acontecer uma desaceleração da atividade? Achamos que não. Portanto, temos um encontro marcado com o populismo extremo. Como você investe neste lugar? Preferimos ficar fora. O mercado precifica algo em torno de 15,75% para a Selic, que é onde achamos que o BC vai levar os juros. Devemos ter um regime de inflação desancorada até que tenhamos uma mudança de governo.
Valor: Porque a desaceleração ajudaria a organizar a economia?
Guerra: Isso ajudaria a ancorar as expectativas de inflação e faria com que a conta corrente parasse de piorar. Como não temos oferta local, muito deste crescimento do potencial vaza pelo canal externo. Apesar do câmbio desvalorizado, a conta corrente piorou junto. Se a economia desacelerar, a conta corrente e as expectativas de inflação iriam parar de piorar. Mas o governo entende, assim como nós, que essa desaceleração geraria um ambiente mais benigno? Eu acho que não. Por isso achamos que, na hora que aparecer a desaceleração, os botões vão começar a ser apertados.
Valor: Há apostas pessimistas nos ativos brasileiros?
Guerra: Já passamos por uma piora muito grande no Brasil e esse pessimismo já é mais consensual. Os ativos estão em preços deprimidos. Há um consenso negativo em relação ao cenário. Vimos os estrangeiros largando as posições no Brasil em novembro e dezembro. Do ponto de vista técnico, temos um consenso pessimista. Os preços, de certa forma, estão deprimidos. Por outro lado, o fundamento é ruim. Então temos preferência por ter uma posição local mais negativa do que otimista e, se o mercado melhorar mais, pode ser o caso de montar posições contrárias. Mas, quando há um consenso e o preço está deprimido, existe sempre o risco de um ‘short squeeze’ [correção rápida de um ativo muito desvalorizado e com um volume grande de apostas contrárias]. Pode ter uma reversão, dado os preços muito deprimidos. Por isso estamos mais leves em Brasil.
Valor: Há alguma posição no mercado local?
Guerra: Sempre temos alguma coisa. Uma posição ‘long and short’ em bolsa, mas evitando correr risco de mercado. Temos posições dentro de uma carteira global que estão compradas em dólar contra uma cesta de moedas, e uma delas é o real. Na parte de juros, estamos zerados. Achamos que a parte curta está mais ou menos próxima da Selic terminal e as inflações estão relativamente próximas ao que achamos que vão ficar nos próximos dois anos. Não compramos a história de que a economia está desacelerando. Ela está rodando bem acima do potencial.
Valor: O que achou das intervenções recentes do Banco Central?
Guerra: Acho que foram bem razoáveis e justificadas. Precisou atender um fluxo muito relevante de saída. O fluxo negativo foi US$ 15 bilhões superior do que em dezembro de 2023. Era um momento de desorganização completa e não tinha a menor condição de o país enfrentar uma desorganização adicional vinda do câmbio. O BC fez muito bem de fazer a intervenção pontual e dar saída nesse momento de apreensão com a economia. Não vejo sinais de que a política cambial tenha mudado. O BC tem feito um ótimo trabalho na condução da política cambial e monetária. Nada do que tem acontecido é culpa do BC.
Valor: Vê risco de a desaceleração “desejada” se agravar e o país caminhar para recessão?
Guerra: Não tem nenhum indício hoje de que teremos uma desaceleração desorganizada. Só vai acontecer se o governo fizer medidas mais radicais que possam intensificar as preocupações e provocar uma queda da confiança. Olhando para a economia em si, o desemprego está na mínima histórica, há crédito disponível e os bancos mostram apetite para dar crédito. Há também uma demanda por crédito gigantesca fora do setor bancário. O setor privado tem participado muito dando liquidez para as pessoas e empresas. Quando olhamos os vetores de emprego, crédito, todos são ‘drivers’ para o consumo. Não há nenhum sinal de que vamos para uma desaceleração desorganizada por conta da macroeconomia. Se o governo não fizer nada e deixar o BC trabalhar, as coisas podem se organizar. Mas a probabilidade disso ocorrer é baixíssima.
Fonte: Valor Econômico

