Por Kaye Wiggins, Antoine Gara e Jamie Smyth — Financial Times, de Nova York e Cambridge (Massachusetts)
23/05/2022 05h01 Atualizado 23/05/2022
A era de três décadas de globalização corre o risco de entrar em marcha a ré, alertaram empresários e investidores de empresas em meio aos preparativos dos líderes mundiais para a primeira reunião na cidade suíça de Davos desde o início da pandemia da covid-19.
As reverberações geopolíticas da guerra da Rússia contra a Ucrânia, somadas à desestabilização das cadeias de abastecimento globais causadas pela covid, as recentes turbulências dos mercados financeiros e o rápido agravamento do panorama econômico mundial deixaram os líderes e investidores de empresas às voltas com a necessidade de tomar decisões estratégicas vitais, disseram muitos deles ao “Financial Times”.
“A tensão entre EUA e China foi acelerada pela pandemia e, agora, [por] esta invasão da Ucrânia pela Rússia – todas essas tendências estão levantando sérias preocupações sobre uma fragmentação do mundo”, disse José Manuel Barroso, presidente do Goldman Sachs International e ex-presidente da Comissão Europeia.
O “onshoring”, a “renacionalização” e a regionalização se tornaram as mais novas tendências para as empresas, reduzindo o ritmo de globalização, acrescentou Barroso: [A globalização enfrenta] atritos com o nacionalismo, protecionismo, nativismo, chauvinismo, se você preferir, ou até, às vezes, com a xenofobia, e, para mim, não está claro quem vencerá.”
“Basicamente ninguém testemunhou” essas condições “durante a trajetória de suas carreiras de investimento”, disse Charles “Chip” Kaye, CEO da Warburg Pincus, uma das maiores firmas de private equity do mundo. Depois da queda do Muro de Berlim, diz ele, a geopolítica havia ficado “de escanteio nos nossos pensamentos” e isso “proporcionou oxigênio para o crescimento global”.
Mas agora a geopolítica está “na frente e no centro” das decisões de investimento, disse Kaye, justo quando chega ao fim “o impulso favorável aos preços dos ativos”, proporcionado por anos de baixas taxas de inflação e de juros.
“Você não está otimizando o resultado econômico, está criando atritos no sistema”, disse Kaye sobre a intensificação das tensões geopolíticas.
As conversas sobre desglobalização entre as empresas ganharam força nas últimas semanas. As menções a termos como “nearshoring” (produzir em um país ou local próximo), “onshoring” e “reshoring” (retomar a produção no país de origem da empresa) em teleconferências de empresas sobre os resultados chegaram seu nível mais alto desde 2005, segundo a firma de dados Sentieo.
Nesta semana, o assunto terá destaque na agenda do Fórum Econômico Mundial em Davos. Desde a reunião passada, em janeiro de 2020, os eventos que se desdobraram pelo mundo desestabilizaram as cadeias de abastecimento que sustentam a globalização defendida pelo Fórum.
“As empresas estão dizendo, ‘preciso de minha produção mais perto de meus clientes’”, disse Jonathan Gray, presidente do Blackstone Group.
O executivo do maior laboratório farmacêutico da Ásia disse que a era da globalização baseada na terceirização de funções para cortar custos acabou.
Christophe Weber, executivo-chefe da Takeda, que tem sede em Tóquio, no Japão, disse que os laboratórios farmacêuticos continuarão a tentar crescer nos mercados internacionais, em particular na China, em razão de seu alto potencial. O foco das empresas, contudo, foi reorientado para uma forma mais sustentável de globalização, disse: “É uma questão de reduzir o risco em sua cadeia de abastecimento.”
“Seria um atalho [grande demais] dizer que a globalização acabou, mas a globalização que as pessoas têm na cabeça não é mais verdadeira”, disse Weber. “A globalização que existia há alguns anos, o comércio sem restrições e a ideia de que ‘o mundo é plano’ acabou.”
A Takeda tem adotado uma política de duplicar os fornecedores para criar mais opções em suas cadeias de abastecimento, acrescentou Weber: “Nunca pensei que [a terceirização] funcionaria a longo prazo, mas acho que isso está claro para todos agora”.
As empresas do setor de consumo também vivem um afastamento da globalização, de acordo com Rachid Mohamed Rachid, presidente do conselho de administração da Valentino e da Balmain.
Algumas empresas de luxo vêm repensando sua estratégia, que costumava depender pesadamente da construção mundial da marca, da venda para turistas e do envio de mercadorias pelo mundo, disse: “O negócio se tornou local […] As lojas, hoje, em Londres, Paris ou Milão agora estão atendendo a seus residentes locais mais do que costumavam atender antes.”
Nos últimos dois anos, as empresas começaram a “pensar ‘local’ e começaram a agir localmente, em vez de agir globalmente”, disse na conferência “O Negócio do Luxo”, organizada pelo “Financial Times”, no início desta semana. “Em diferentes mercados, como EUA, Europa, Ásia, [em] mercados ainda menores, como América Latina e África, as pessoas estão agora olhando localmente e tenho certeza de que haverá muitos negócios locais ocorrendo”.
Dominik Asam, diretor de finanças da Airbus, alertou para a possibilidade de que isso possa ter graves consequências econômicas.
“Se uma parte significativa das décadas de ganhos de produtividade impulsionados pela globalização for revertida num curto período de tempo, isso aumentará a inflação e resultará numa grande e longa recessão”, disse. “É exatamente por isso que acredito que as grandes potências econômicas chegarão à conclusão de que precisam fazer tudo o possível para evitar um cenário tão devastador.”
Barroso atribui a situação a um espírito menos cooperativo na esfera política do G-20 hoje do que em comparação à crise financeira de 2008. Os líderes políticos deveriam distinguir quando há graves diferenças geopolíticas e quando há necessidade de enfrentar desafios, como saúde pública e as mudanças climáticas, disse.
O presidente do Bundesbank (BC da Alemanha), Joachim Nagel, apontou a desglobalização como um dos “três Ds” que “aumentará a pressão inflacionária” ao lado da descarbonização e da demografia.
O afastamento da globalização vem sendo “alimentado pelas tensões geopolíticas e pelo desejo de ter uma economia menos dependente”, disse o presidente do Bundesbank após uma reunião com ministros das Finanças e presidentes dos bancos centrais do G-7, em Königswinter, na Alemanha, na semana passada. (Colaboraram Brooke Masters, de Londres e Sylvia Pfeifer, de Frankfurt)
Fonte: FT / Valor Econômico
