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O cenário de juros altos por mais tempo será o “novo normal” na próxima década, afirma o professor de economia em Harvard Kenneth Rogoff, em entrevista ao Valor. Segundo o especialista, “vivemos em um mundo novo”, mas entramos em uma era na qual “a maioria das mudanças inesperadas da inflação será para cima e, nos próximos cinco ou sete anos, poderemos ver um novo pico como o que vimos recentemente”. Ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rogoff foi também integrante do conselho do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e é grande mestre de xadrez. Ele vem ao Brasil para participar do MKBR24, evento promovido pela B3 e pela Anbima, que acontece nesta quinta-feira (6).
Para ele, o Fed deve iniciar o período de cortes de juros ainda neste ano, mas a taxa vai terminar o ciclo entre 3,5% e 4%. De acordo com Rogoff, a taxa de juros longa nos EUA vai cair muito pouco do atual nível, em meio a um mundo com pressões inflacionárias de médio e longo prazos. Nessa nova era de juros altos por mais tempo, o mundo terá menos crescimento, o ritmo do comércio tende a diminuir e o dólar vai se manter forte.
O esforço do Fed, porém, será vitorioso. A previsão de Rogoff é de “pouso suave” da economia americana, com a inflação convergindo para a meta de 2% entre meados e o fim de 2025. Sobre a eleição nos EUA, o economista tem uma visão crítica: “estou extremamente infeliz com as escolhas que temos [entre o democrata Joe Biden ou o republicano Donald Trump]”. Na visão do professor de Harvard, “falta tanto aos democratas quanto aos republicanos visão pragmática de como governar”. A seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Qual o seu cenário base para o ciclo de cortes do Fed?
Kenneth Rogoff: Acho que eles vão cortar as taxas uma vez neste ano. Mas o que sinto fortemente é que os juros vão continuar elevados. Mesmo no final deste ciclo, as taxas ainda serão de, pelo menos, 3%, 3,5% ou, provavelmente, 4% no fim de 2026. Grande parte da questão não é exatamente quantos cortes, mas para onde o ciclo está indo. As taxas de juros de longo prazo nos Estados Unidos, como as de 10 anos, não vão cair muito, em média. As atuais taxas de longo prazo serão o novo normal.
Valor: A inflação vai convergir para a meta do Fed?
Rogoff: Sim. Acho que até meados de 2025, ou, na pior das hipóteses, no fim de 2025 convergirá para a meta [de 2% do Fed. Mas penso que vivemos numa nova era em que, daqui para frente, a maioria das mudanças inesperadas na inflação serão para cima. Provavelmente teremos nos próximos cinco a sete anos outro pico [de inflação] como este. Vivemos em um novo mundo. Quem pensa que vai voltar a ser como era [antes da pandemia] está sonhando.
Valor: O Fed então pode ter de retomar um ciclo de alta de juros?
Rogoff: Na verdade, não acho. Mas o que estou dizendo é que ainda teremos mais choques inflacionários. Tínhamos [até antes da pandemia] um mundo onde os BCs estavam fixando a taxa entre zero e 1%. Eles desejavam poder reduzir ainda mais as taxas, mas não conseguiram. E agora vivemos num novo mundo onde teremos mais um viés inflacionário, enquanto a política monetária tenta trazer [a inflação] para 2%. Então teremos daqui para frente uma média de mais de 2% [no índice de inflação].
Valor: Qual o impacto dos juros elevados por mais tempo?
Rogoff: Bem, em primeiro lugar, as taxas de juros não são tão diferentes das que eram antes da crise financeira [de 2008]. Estão até um pouco mais baixas. Portanto, nessa perspectiva, não é desastroso. Penso que os dois principais efeitos são: primeiro, significará um dólar mais forte por mais tempo, o que prejudica o comércio mundial. Um dólar mais forte não reduz o crescimento global, mas diminui o nível de comércio e, para ser mais preciso, desacelera o crescimento do comércio. Uma coisa que não sei completamente é quais bolsos vão ter problemas. Se olharmos para os países de baixa renda, eles estão em grandes apuros. Já os mercados emergentes têm sido surpreendentemente resilientes. Então o meu melhor palpite é que isso [juros altos por mais tempo] significa menor crescimento e taxas de juro reais globais elevadas, mas não necessariamente algo desastroso. Porque neste momento as políticas estão mais cautelosas. E existem vulnerabilidades. Entendo que no Brasil a política fiscal esteja lutando para cumprir suas metas. Mas não estou prevendo um calote em um grande mercado emergente, salvo se houver algum outro choque importante.
Valor: Quais são os principais riscos no médio prazo?
Rogoff: Vivemos num mundo diferente depois da pandemia, onde há muitas pressões que fazem as taxas de juro subirem. A dívida nos EUA, em particular, mas também em outros países avançados, é muito, muito mais elevada do que antes da pandemia. E isso está exercendo pressão ascendente sobre as taxas de juros. Mas também há pressão dos gastos com a defesa e a transição verde, mas, especialmente, as pressões populacionais, que estão fazendo subir as taxas de juro de longo prazo. Vivemos num novo normal, que é mais parecido com o velho normal de antes da crise financeira global. Agora, ninguém sabe ao certo o que se passa. Existem fatores de longo prazo, como a demografia, a desigualdade, a [elevação da] produtividade, que os economistas argumentaram empurraram as taxas de juro para baixo. Acho que isso foi exagerado. O [ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos] Larry Summers disse que tivemos uma estagnação secular. Mas não tivemos. Foi um resultado da crise financeira [o ambiente de baixa inflação e de juros perto de zero]. E ultimamente o próprio Larry tem dito: ‘bem, a era da estagnação secular já passou, o que significa que as taxas de juros serão mais altas’. Discordo. Nunca tivemos uma era de estagnação secular, estávamos vivendo o desfecho da crise financeira. E os juros mais altos teriam acontecido antes se não fosse a pandemia.
Valor: Ainda existe risco de a economia dos EUA entrar em recessão?
Rogoff: Se tivermos uma aterrissagem forçada, o Fed vai cortar as taxas de juros. Se tivermos uma recessão, podem cortar as taxas de juros para 2% ou 2,5%. Mas as probabilidades de uma recessão profunda são de, no máximo, 15%. Não vejo nada neste momento que sugira um colapso imediato. Sim, o setor imobiliário comercial está com problemas, mas não é tão problemático como a habitação era em 2008.
Valor: A taxa de juros neutra dos EUA está mais elevada?
Rogoff: Sim, absolutamente. O novo neutro [nominal] nos Estados Unidos deve ser de 3,5% a 4%. Não de 2%, nem de 2,5%.
Valor: Mas quais seriam as causas dessa elevação?
Rogoff: Certamente a desglobalização e a fragmentação geopolítica são forças inflacionárias. Estamos vendo muitas das forças que ajudaram a reduzir os preços [após a crise financeira] se inverterem. Parte disso é o que os EUA estão fazendo com a China. O presidente [dos EUA, Joe] Biden está impondo todos os tipos de tarifas. E se [o ex-presidente Donald] Trump vencer [as eleições presidenciais americanas], em que as chances estão em 50% a 50%, haverá mais tarifas [sobre a China], o que exerceria mais pressão inflacionária. Tem ainda a dívida pública americana. Será cada vez mais doloroso pagar esses juros. A secretária [do Tesouro dos EUA] Janet Yellen já começou a falar cada vez mais sobre isso. Uma incógnita é um novo presidente do Fed [em 2026]. Há muitas pressões políticas sobre o Fed, que no longo prazo, podem tornar difícil [à autoridade] resistir completamente a essas forças inflacionárias. Os banqueiros centrais sabem como manter a inflação em 2%, mas os políticos que estão acima deles não. Portanto, algumas destas forças inflacionárias irão avançar. E é por isso que estou argumentando que a era de 2% ou menos de inflação, que é o que tínhamos antes da pandemia, agora será uma era de 2% a 3% ou mais de inflação na próxima década.
Valor: O endividamento dos EUA pode se tornar um risco?
Rogoff: Penso que a dívida dos EUA é uma grande fonte de instabilidade. Nosso sistema político não se ajustou à mentalidade de que nem tudo é de graça e acredita que essa dívida não importa. Corte os impostos, se você for o republicano; gaste mais dinheiro, se você for o democrata. Acho que vivemos num novo mundo onde a taxa de juro real [neutra], a taxa de juro ajustada à inflação, será mais próxima de 1,5% ou 2%. E deve ser ainda maior no momento. Em vez de zero ou -1%, onde esteve [até antes da pandemia]. O Fed está perdendo muito dinheiro. Nos últimos dois anos, o Fed teve perdas enormes porque contraiu empréstimos a descoberto e detém esta dívida pública de baixo rendimento. A secretária Janet Yellen está começando a perceber: ‘oh, meu Deus, os pagamentos da dívida estão subindo e onde vão chegar?’ Podem chegar a US$ 700 bilhões por ano. E podem até subir muito mais. Portanto, nosso sistema político não está pronto. Donald Trump diz que vai cortar impostos para todos. E Biden está totalmente no bolso da ala do partido [Democrata] que quer gastar o máximo possível. Na a Europa, o cenário é muito diferente. Eles entendem os dados como um problema. Mas, por outro lado, querem ter um Estado de bem-estar social massivo. Gastam, mas não o suficiente, querem uma transição verde, mas ainda não descobriram como pagar por isso. Portanto, penso que há problemas na Europa, mas são piores nos Estados Unidos. Acho que é um grande problema para a economia global. Porque, se errarmos, poderemos ter uma grande explosão de inflação, algo como 10% a 15%, porque não há válvula de segurança para nossa dívida.
Valor: A eleição presidencial americana pode ser um risco?
Rogoff: Estou extremamente infeliz com a escolha que temos [entre o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump]. Acho que o presidente Trump tornou ambos os partidos mais burros. Os democratas adotaram um estado de extrema esquerda nas suas políticas. Há uma noção idealista, mas sem uma visão pragmática de como governar. Gostaria que os democratas escolhessem outro candidato. Trump é mais perigoso. Sabe o conceito de eventos tipo cisne negro? Com Trump, podemos ter um cisne negro todo mês. Simplesmente não tenho ideia do que está por vir [com uma nova presidência de Trump], embora as políticas dele sejam mais centristas. É muito mais pragmático do que Biden na economia. Mas pelo fato de colocar seus problemas pessoais acima das políticas, torna-se muito imprevisível. O pacote geral é pior.
Valor: Qual sua visão sobre o Plano Real, implementado há 30 anos no Brasil?
Rogoff: O Brasil se saiu notavelmente bem, estabilizando a inflação. Tem sido uma grande história de sucesso. Isso não aconteceu da noite para o dia e nem em uma única etapa. O plano foi um passo no caminho para um banco central moderno, com metas de inflação independentes. Eu não acho que o país poderia ter saltado de onde estava em 1994 para onde está hoje sem o real no meio. Quando passei minha lua de mel no Brasil, em 1995, por conta do plano [no início, o câmbio tinha paridade com o dólar], foi muito caro. Nós amamos o Brasil, mas eu e minha esposa chamamos [a viagem] de nossa ‘moneymoon’ [trocadilho com ‘honeymoon’, lua de mel em inglês]. Eu diria que o plano foi um passo no caminho para a estabilização moderna da economia.
Valor: Pode existir uma bolha nas ações de tecnologia?
Rogoff: Sim e não. Acho que a inteligência artificial [IA] é real. Será a maior mudança em nossa tecnologia desde a invenção da imprensa. Só estamos vendo o começo dela. No entanto, sempre que se tem uma nova tecnologia como essa, é muito difícil prever quem serão os vencedores e os perdedores. Então espero que o mercado tenha ciclos. O setor de tecnologia em geral vai crescer cada vez mais. Acho que haverá oscilações violentas. Mas penso que a IA é real em termos de seu impacto econômico. Agora não é só inteligência artificial, são avanços na medicina e muitas outras coisas que não são necessariamente IA. Se você me perguntar, qual empresa comprar [no longo prazo], tenho de dizer que é muito difícil saber. Provavelmente, metade delas não será importante em 10 anos.
Fonte: Valor Econômico

