Por Marcos de Moura e Souza e Roberto Lameirinhas — De São Paulo
09/10/2023 05h02 Atualizado há 5 horas
Razões diferentes, com resultados também distintos, levaram três países latino-americanos a adotar o dólar como moeda – o mesmo caminho que o candidato líder na maioria das pesquisas para a eleição presidencial argentina, o ultradireitista Javier Milei, promete adotar, se eleito. Panamá, Equador e El Salvador – que têm economias muito menores do que a argentina -, porém, sofrem cada um a seu modo as consequências de atrelar sua política monetária à do banco central dos EUA.
Em nenhum dos três casos, a dolarização resolveu totalmente problemas macroeconômicos crônicos do continente, como o desequilíbrio fiscal, o persistente baixo crescimento e a desigualdade. Um dos poucos ganhos foi o controle da inflação que, apesar de serem menores que a média da região, ainda assim são elevadas para uma economia dolarizada. E esses países também arcam com o custo de ficarem mais expostos a choques externos a eles por não mais ditarem sua política monetária.
Especialistas ressaltam que, além do tamanho e da complexidade da economia da Argentina, o processo de dolarização defendido por Milei seria mais complicado porque o país é muito mais dessincronizado com os ciclos econômicos dos EUA do que as três nações dolarizadas da região.
“Para essas economias a dolarização pode fazer algum sentido”, diz Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre) e sócio da consultoria BRCG. O caso argentino é muito diferente, ressalta Ribeiro.
O Produto Interno Bruto (PIB) total da Argentina em 2022 foi estimado em US$ 660 bilhões. O do Equador, maior economia entre os três dolarizados, foi de US$ 109 bilhões. O de El Salvador foi de cerca de US$ 30 bilhões e do Panamá, US$ 18 bilhões. As economias dos três países têm laços mais estreitos do que a Argentina com cadeias de produção e financeiras dos EUA.
E mesmo que a Argentina tivesse mais sincronia com o mercado americano, a opção pela dolarização ainda seria questionável, dizem economistas. “Canadá e México, por exemplo, são economias profundamente ligadas aos ciclos econômicos dos EUA e nunca pensaram em abandonar suas próprias moedas”, diz Ribeiro.
Num primeiro momento, uma dolarização poderia ter algum efeito sobre a descontrolada inflação da Argentina, que ultrapassou os 124% por ano em agosto. “Na largada, poderia parecer que a dolarização deu certo, mas isso esconderia um grande risco”, avalia Ribeiro. “Certamente levaria a uma desorganização da estrutura produtiva do país.”
“A dolarização não é um almoço grátis. Ela tem custos e limita o conjunto de ferramentas políticas do Estado para gerir sua economia”, afirma, em um estudo sobre as condições de uma eventual dolarização da economia argentina, o eceonomista-chefe para América Latina do banco Goldman-Sachs, Alberto Ramos. “Do ponto de vista técnico, a dolarização também não é um passo fácil e, em si, ela não garante a estabilização”, afirma Ramos.
A dolarização limita as ferramentas políticas do Estado para gerir sua economia” — Livio Ribeiro
“A dolarização requer um cenário de política macroeconômica robusto para ser sustentável, e exige uma política fiscal disciplinada, o que não é uma condição adquirida automaticamente com a dolarização”, diz o economista.
“No caso da Argentina, nenhuma das pré-condições para atenuar os custos da adoção do dólar como moeda está totalmente cumprida”, aponta o estudo do Goldman Sachs. “Não há ciclos de negócios sincronizados ou estrutura econômica semelhante entre a Argentina e os EUA; nem flexibilidade de preços e salários para a transição; nem um contexto social que apoie a disciplina fiscal; nem massa crítica de reservas brutas em dólares no banco central para comprar a base monetária em pesos e garantir as operações de curto prazo do sistema financeiro.”
Tchau sucre. “Frear a inflação foi um dos fatores positivos da dolarização do Equador, em janeiro de 2000”, disse o cientista político Simón Pachano, professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), de Quito. Em 2001, a inflação equatoriana caiu para 22,44% – de 91% do ano anterior – e acabou se estabilizando nos patamares médios da região nos anos seguintes. “A decisão de adotar a moeda americana atendeu também a um objetivo político”, “A dolarização eliminou a possibilidade de governos desvalorizarem a moeda e brincarem com o valor do dinheiro”, afirmou.
“Essa era uma prática comum de países com tendências populistas que buscavam na desvalorização e na emissão da moeda local resultados políticos positivos no curto prazo”, disse Pachano. “A dolarização também provocou uma melhora no poder de compra dos equatorianos”, afirma.
Pachano lembra, porém, que a transição equatoriana do sucre, a antiga moeda do país, para o dólar se deu em meio a uma grande distorção, causada pela diferença, ou spread, entre a cotação oficial do dólar, que era de 20 mil sucres, para a do paralelo, que estava em 25 mil sucres – de 20%, portanto. Na Argentina, o spread voltou a disparar na última semana em meio à crescente expectativa de uma desvalorização pós-eleição, subindo acima de 150% na sexta-feira.
“A dolarização no Equador foi feita [com o sucre] num valor mais alto e consequentemente mais custoso para a população porque não havia dólares em volumes suficientes”, diz Pachano. “Os aliados de Milei dizem que na Argentina há dólares e que uma vez que se dolarizar, a moeda americana vai aparecer. Mas não creio que isso seja tão simples assim”, afirma.
Na verdade, economistas argentinos estimam que um valor similar ao do PIB total do país esteja convertido em dólares e escondido sob colchões e em armários de poupadores desconfiados do sistema financeiro e bancário da Argentina.
Os custos da dolarização se tornam mais evidentes em momentos de crise aguda. Em um artigo publicado em janeiro, lembrando os 23 anos da troca da moeda, o atual gerente geral do BC equatoriano, Guillermo Avellán Solines, citou que num período mais crítico da pandemia, as reservas internacionais do país se reduziram a menos de US$ 2 bilhões “permitindo cobrir com ativos líquidos somente 25% dos depósitos das instituições financeiras públicas e provadas no Banco Central do Equador”.
Esse quadro só se reverteu com a gradual reabertura em todo o mundo das restrições relacionadas à covid-19. No fim do ano passado, as reservas internacionais do Equador estavam acima de US$ 8,3 bilhões, permitindo, segundo o artigo, uma cobertura de 100% dos depósitos.
“Apesar das limitações da dolarização, vários especialistas nacionais e estrangeiros reconhecem os benefícios gerados por esse regime monetário, especialmente para países de baixa renda, com desafios em matéria de institucionalidade e estabilidade política”, apontou Solines.
Experiência salvadorenha. Já em El Salvador, a dolarização foi implementada em 2001 menos em razão da necessidade de conter a inflação do que com a finalidade de levar o país a uma situação fiscal menos desequilibrada após 13 anos de guerra civil encerrada nos anos 90, cujos efeitos para a economia persistiram até a virada do século.
“A dolarização salvadorenha atendeu parcialmente às expectativas, uma vez que o que se esperava era que ela pudesse impulsionar o investimento e a criação de empregos”, disse Otto Boris Rodríguez, que acompanhou boa parte da transição do país para a dolarização como especialista do Departamento de Operações Monetárias do Banco Central de El Salvador, entre 1999 e 2001. Até 2021, Boris Rodríguez foi vice-prsidente do BC.
”Consideramos que o período de transição ocorreu por cerca de dois anos, um período em que houve uma substituição gradual do colón para o dólar e as duas moedas circulavam no mercado”, afirmou Boris Rodríguez. “As taxas de juro baixaram, os prazos de financiamento foram alongados em razão da maior previsibilidade e, nesse sentido, melhoraram as condições de financiamento da população”, lembra.
“Outra conquista significativa foi que com a eliminação do risco cambial, o risco-país também melhorou e alcançamos o grau de investimento”, afirmou.
“Eu diria que no primeiros anos se cumpriu relativamente bem a meta de se manter o equilíbrio fiscal, mas na última década, esse foi um objetivo que já não se pôde alcançar”, prosseguiu o salvadorenho. ”Então, eu diria que tivemos resultados mistos”, afirmou.
Boris Rodríguez afirma que a mudança de moeda assegura que não haverá descontrole da inflação – embora economistas alertem que um índice acima de 2% ao ano ainda esteja acima do desejável para uma economia dolarizada e pequena como a de El Salvador. Ele destaca ainda que a troca da moeda não impediu um significativo aumento nas taxas de endividamento do Estado. “Quando se dolarizou a economia, por exemplo, tinhamos uma dívida de menos de 40% do PIB e agora temos uma dívida de 85%. A dolarização não teve o poder de eliminar esse fator de risco”, disse.
Já nasceu dolarizado. Um pouco diferente dos casos de Equador e El Salvador, o Panamá praticamente já nasceu dolarizado. O país adotou a moeda um ano depois de tornar-se independente da Colômbia, em 1903. Como toda a Zona do Canal permaneceria sob tutela de Washington e as receitas da passagem seriam cobradas em moeda estrangeira, o dólar acabou como um substituto natural para a moeda nacional – o balboa, que formalmente ainda existe, em paridade com a divisa americana.
A desigualdade no Panamá, porém, é há décadas uma das maiores da América Latina – um dado que tem menos a ver com a dolarização do que com o modelo de má distribuição da riqueza da região. A inflação anual no Panamá ficou no patamar de 3% no ano passado, enquanto a taxa de crescimento chegou a 10,8% em 2022, como efeito rebote da recuperação da pandemia de covid-19 – em 2020, o PIB se contraiu quase 18%.
“Este é um país em que praticamente não existe classe média, as fontes de geração de riqueza são pouco diversificadas e a base de atração de investimentos está na prestação de serviços financeiros do tipo off-shore”, disse um consultor econômicos panamenho sob condição de anonimato. ”O Panamá é um país no qual a população mais pobre estaria exposta a risco sociais fosse qual fosse a moeda. Simplesmente não há empregos”, afirmou a fonte.
Fonte: Valor Econômico

