Corte de vegetação nativa compromete chuvas e mananciais da região e pode afetar inclusive a água que é usada na agricultura
Por Jaime Gesisky — Para o Valor, de Alto Paraíso de Goiás
23/05/2022 05h02 Atualizado há 6 horas
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Comunidades tradicionais e povos indígenas formam a base de uma economia que procura preservar o Cerrado — Foto: Acervo ISPN/André Dib
Maio começou com uma boa notícia para o Cerrado. Após passar por um sufoco, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) conseguiu garantir recursos para monitorar vegetação, desmatamento, queimadas e fogo no bioma pelos próximos três anos. São R$ 15 milhões que virão do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e garantirão que os dados sobre uso e ocupação do solo na região continuarão a ser gerados.
Mas o que está tirando o fôlego de quem observa o Cerrado é que, segundo o Inpe, o número de alertas de desmatamento no bioma nos primeiros quatro meses deste ano é 61% maior do que em igual período do ano passado, tendência já registrada nos últimos três anos. De agosto de 2020 a julho de 2021, foram desmatados mais de 8,5 mil km2 de vegetação nativa.
Quem observa as causas e efeitos do desmatamento no Cerrado tem com o que se preocupar. A região ocupa um quarto do território nacional na parte central do Brasil, com cerca de 2 milhões de km2, e contribui com 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras, incluindo as que são partilhadas com outros países da América do Sul, explica a pesquisadora Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ela, a vegetação do Cerrado interliga atmosfera e solo. E a drenagem da água da chuva depende em grande parte da cobertura vegetal. O desmatamento em larga escala afeta a capacidade de produção e conservação de água, colocando em risco as seguranças hídrica, energética e alimentar, não só da região.
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“Os estudos mostram redução de 8,4% nas chuvas de 1977 a 2010 no Cerrado. Foram analisados dados de 125 estações pluviométricas, distribuídas em nove Estados que fazem parte do bioma. A tendência de diminuição nas chuvas foi observada em 89 estações, sendo que em 18 delas – 14% do total -, a mudança foi mais significativa”, conta Bustamante.
Para a professora, há uma relação direta entre a redução das chuvas no Cerrado e a agricultura. “A atividade em terras agrícolas mais que dobrou entre 2003 e 2013 em área, saindo de 1,2 milhão para 2,5 milhões de hectares, com 74% das novas terras de cultivo provenientes de vegetação do Cerrado antes intacta.” Tais mudanças, diz ela, diminuíram a quantidade de água reciclada para a atmosfera via evapotranspiração a cada ano.
Como o Cerrado é tido como a “caixa d’água” do Brasil, se esse balanço natural se quebra, a crise hídrica será inevitável, dizem os especialistas. E deve faltar água inclusive para a agricultura, alerta a diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar.
Ela lembra que o desmatamento hoje no Cerrado é basicamente para o cultivo de grãos, em especial a soja. “Como o desmatamento altera o clima local, deixando a paisagem do Cerrado ainda mais seca, as lavouras vão precisar de mais água do que já usam hoje. O impacto sobre os mananciais será ainda pior, agravando a situação de toda a paisagem do Cerrado”, esclarece a cientista.
Atualmente, o epicentro do desmatamento no Cerrado está na região conhecida como Matopiba, que engloba trechos do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Dados do Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária (Mapa) mostram que a produção de grãos – soja, principalmente – dobrou no país em dez anos. Passou de 14 milhões de toneladas na safra 2011/2012 para 27,6 milhões em 2020/2021. Do total de vegetação suprimida em todo o Cerrado entre agosto de 2020 e julho de 2021, mais de 60% foram no Matopiba.
Segundo previsões oficiais, a vegetação nativa seguirá cedendo espaço para a agricultura. O Mapa projeta que os quatro Estados devem produzir 36 milhões de toneladas de grãos em uma área plantada de, 9,3 milhões de hectares em 2030/31, conforme o documento “Projeções do Agronegócio – Brasil 2020/21 a 2030/31”.
Além da alta biodiversidade característica do Cerrado – mais de 6 mil espécies de árvores e 800 espécies de aves, a maior parte endêmica e ameaçada pelo desmate -, o bioma concentra grande diversidade humana. Somente no Matopiba há 35 terras indígenas, 46 unidades de conservação, 1.053 assentamentos e 36 territórios quilombolas. Há séculos, esses povos e comunidades tradicionais manejam e conservam a biodiversidade.
Como as políticas públicas para a conservação do Cerrado são frágeis, uma alternativa estaria na mão do mercado. “Empresas e investidores poderiam assumir o compromisso de não comprar ou financiar produtos agropecuários com rastro de desmatamento seja legal ou não”, aponta Ane Alencar, do Ipam. Segundo ela, muitos acordos para pôr fim ao desmate no Cerrado não avançam. Houve uma experiência de sucesso na Amazônia, a moratória da soja, em que grandes compradores deixaram de pagar pelo grão que vinha de áreas desmatadas na região. “É possível dar ao Cerrado a mesma oportunidade”, defende.
Enquanto as soluções em grande escala não chegam, o Cerrado vai achando caminhos. Quem aponta a direção da biodiversidade são os povos e comunidades tradicionais que há séculos ocupam a região. Quilombolas, povos indígenas, comunidades ribeirinhas, comunidades de fundo e fecho de pasto, geraizeiros, quebradeiras de coco-de-babaçu fazem do Cerrado sua base econômica e cultural.
O zootecnista Luis Carrazza, secretário executivo da Central do Cerrado, uma iniciativa que reúne hoje 23 empreendimentos comunitários nos nove Estados que fazem parte do bioma, conta que a central apoia a produção e comercialização de 300 itens entre alimentos, óleos, cosméticos e artesanato, com faturamento anual de cerca de R$ 20 milhões. “É nada se comparado ao preço de um único contêiner de soja, mas é significativo frente a tanta adversidade e exclusão econômica, tecnológica e digital a que as comunidades do Cerrado estão expostas”, comenta. “Embora ajudem a manter o Cerrado com seus serviços ecossistêmicos essenciais – água, biodiversidade, clima – essas comunidades seguem invisíveis, sem incentivos e desassistidas pelo Estado”, lembra.
Um exemplo de que é possível fazer do Cerrado uma opção econômica viável é a cadeia produtiva do baru – castanha nativa que já cruzou as fronteiras do país e atende consumidores na Europa, Ásia e Estados Unidos. Em 2021, somente a Central do Cerrado ajudou a colocar no mercado internacional seis toneladas de baru.
Produtos do Cerrado também estão presentes na medicina. A rutina é o principal princípio ativo dos frutos de fava-d’anta – ou faveira, espécie típica das áreas de Cerrado. Quatro cooperativas ligadas à central abastecem parte da demanda da indústria farmacêutica na Europa. A rutina é usada em medicamentos que fortalecem os vasos sanguíneos e capilares e na produção de cosméticos.
Fonte: Valor Econômico