O aumento da desconfiança dos participantes do mercado em relação ao Brasil afetou em cheio o desempenho dos ativos financeiros domésticos em maio, especialmente se comparado ao de outros mercados emergentes. O processo de erosão da credibilidade fiscal e monetária se intensificou ao longo do mês e nem mesmo as tentativas de dissipar os temores por parte do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e de dirigentes do Banco Central foram suficientes para driblar o pessimismo. Dúvidas sobre a condução futura da política econômica contaminaram o humor.
A piora na percepção de risco ocorreu em todos os mercados. No câmbio, o dólar subiu 1,09% contra o real em maio, mas caiu contra todas as outras moedas da América Latina; no segmento de juros, a taxa de dez anos do Brasil voltou a se aproximar de 12% e supera com os juros nominais em outros emergentes, com exceção da África do Sul; e a bolsa brasileira em dólar (EWZ) caiu 4,12% contra uma alta de 2,20% do fundo de índice de ações emergentes (EEM) no mês.
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“O que a gente tem visto é uma perda de credibilidade do Brasil tanto do ponto de vista fiscal quanto do monetário, mais recentemente”, diz Marco Aurelio Freire, sócio e gestor de fundos líquidos da Kinea Investimentos. Em vídeo mensal da gestora, Freire lembra que, em abril, a mudança nas metas de resultado primário a partir de 2025 azedou o humor. “O governo está dizendo para a gente, basicamente, que está difícil aumentar imposto no Brasil, há resistência no Congresso e a agenda de subir imposto está acabando.”
“Se não posso subir impostos, teria que cortar gastos, mas, para um governo do PT, é uma tarefa difícil cortar gastos. Vamos ter um problema nos próximos anos: as despesas permanentes do governo, como saúde, educação e Previdência, crescem acima do limite de gastos. Se isso acontece, os gastos discricionários têm que crescer abaixo. O governo vai ter que ir cortando esses gastos discricionários e isso é cortar investimento, cortar emenda parlamentar, entre outras coisas. É muito difícil de ser feito no Brasil de hoje, não está alinhado aos interesses políticos e vemos a credibilidade fiscal do Brasil piorando ainda mais à frente”, afirma.
Na sexta-feira, em entrevista ao Valor, o ministro Haddad abordou alguns tópicos que foram vistos com bons olhos por participantes do mercado, como a manutenção da meta de inflação em 3% e o debate sobre as desvinculações de benefícios previdenciários do salário mínimo. Os ativos domésticos, inclusive, deram início ao pregão de sexta-feira com alguma valorização, mas perderam fôlego ao longo do dia e, assim, deram prosseguimento ao estresse recente.
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“O ministro foi muito bem ao apontar a questão da desvinculação do salário mínimo e na divisão de sua resposta, ao apontar que há três facetas na discussão: a econômica; a jurídica; e a política”, diz o economista-chefe do PicPay, Marco Antonio Caruso, que enfatiza pontos já citados por Freire, como o fato de uma boa parte das despesas no Orçamento federal crescer acima da regra de gastos do arcabouço fiscal nos próximos anos.
“Em poucos anos, vamos voltar à discussão que já existia na época do teto de gastos. Inevitavelmente, vamos chegar a um ponto em que não teremos para onde correr, porque o espaço de despesa discricionária para cortar vai diminuir muito. As regras de hoje serão inviáveis. Ou a regra fiscal será afrouxada de novo, o que vai ferir ainda mais a nossa credibilidade fiscal, ou teremos que mudar as regras de despesas, como por exemplo essa desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo, o que, economicamente, faz todo sentido”, afirma Caruso.
O fato de essas discussões terem aflorado ao longo do mês de maio cristalizou os juros reais de longo prazo, que são considerados uma das melhores métricas de risco de um país, em níveis muito altos no Brasil. A NTN-B para maio de 2035 encerrou maio pagando um juro real de 6,18%. Para efeito comparativo, o juro real de dez anos da Colômbia está em 5,61%; o do México, em 5,36%; o da África do Sul, em 5,24%; e o do Chile, em 2,21%, de acordo com dados do J.P. Morgan.
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A piora na percepção de risco se manifestou, ainda, na curva de juros nominal. Na quarta-feira, a taxa do DI para janeiro de 2029 chegou a 11,765%, maior nível do ano, o que ajuda a reforçar a percepção de um mercado de juros bastante estressado. “Acho que o próximo gatilho para o Brasil vai ser o decreto da meta de inflação contínua. A Fazenda está trabalhando nisso e vai ser importante para tentar acalmar o mercado de juros, que fez máxima no ano”, afirma Luiz Eduardo Portella, sócio e gestor da Novus Capital.
Em podcast da gestora, ele afirma que o decreto da meta contínua será importante na avaliação dos próximos passos da política econômica. “A credibilidade ficou arranhada no BC”, diz Portella, ao notar a alta das expectativas de inflação no Boletim Focus, o que, na visão do profissional, obrigará a autoridade monetária a caminhar para uma decisão unânime de manter o juro básico em 10,5% na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom).
A manutenção da meta de inflação em 3% foi um dos pontos abordados por Haddad na entrevista ao Valor, após os ruídos gerados no mercado na semana retrasada.
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“O ministro buscou reiterar suas opiniões com justificativas que fogem de critérios técnicos e o tema da meta foi emblemático. Reiterou que é uma meta exigente em relação ao histórico da inflação brasileira, mas não citou que a meta perseguida nunca foi 3% antes”, diz o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez.
Afora isso, a deterioração do quadro fiscal tem ajudado a guiar os processos inflacionário e de piora nas expectativas de inflação, o que faz com que a defesa de Haddad não suavize tanto a percepção negativa dos agentes, na visão de Sanchez. “Dizer que alterar a meta não está na pauta tranquiliza no curtíssimo prazo, mas não acaba com temores de que essa discussão pode voltar mais à frente.”
Fonte: Valor Econômico

