Demanda chega a ser quase o dobro da oferta; bancos elevam alocação de olho no secundário
Por Liane Thedim — Do Rio
Na esteira do rali das debêntures incentivadas (com isenção de Imposto de Renda), causado pelas restrições do Conselho Monetário Nacional (CMN) às emissões de certificados e letras de crédito imobiliário e do agronegócio (CRIs, CRAs, LCIs, LCAs e LIGs), outra corrida começou. Para aproveitar a janela favorável, com alta demanda e taxas em baixa, empresas estão antecipando suas captações e já há casos de companhias que iam lançar debêntures comuns, por exemplo, e mudaram para as incentivadas. Em apenas 20 dias de fevereiro, Renato Otranto, chefe de estruturação do banco Daycoval, calcula que o volume de operações, incluindo os dois tipos de papel, já supera os R$ 20,7 bilhões de janeiro, períodos que costumam ser sazonalmente mais fracos, e prevê que o mês pode fechar com R$ 30 bilhões em emissões.
Se comparada a 2023, a alta é ainda mais significativa, já que nos primeiros dias do ano o mercado operava sob o baque do rombo da Americanas. Janeiro do ano passado ainda teve operações num total de R$ 26,6 bilhões, mas em fevereiro o volume se restringiu a R$ 16 bilhões. “O investidor está comprando o que vê pela frente na expectativa de os spreads [diferença entre taxas pagas pelos títulos e rendimentos das NTN-Bs equivalentes, que são referência no mercado de incentivadas] caírem mais”, diz Otranto.
Ele conta o caso de um emissor frequente que há três semanas vinha formatando uma operação de debênture comum. Agora, comenta, está estruturando via Lei 12.431, que criou as incentivadas. “Quem precisa mesmo está se mexendo. As que não têm situação emergencial estão avaliando se cai mais.”
Duas situações dos últimos dias vêm sendo citadas por gestores como representativas do momento. A da PetroRio, que acaba de emitir R$ 2 bilhões em debêntures em duas séries, de cinco e dez anos, com taxas de 11,1% e IPCA mais 6,5%, respectivamente. “A empresa não precisava de dinheiro agora, tem posição de caixa grande, foi uma operação mais oportunística”, avalia Leonardo Ono, gestor de crédito privado da Legacy Capital. E a da Aegea Saneamento e Participações, cujas coligadas Águas do Rio 1 e 4 aprovaram R$ 3,4 bilhões em duas séries (10 e 18 anos).
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Ricardo Ara, cogestor da Legacy, conta que depois do sucesso da captação da empresa em agosto de 2023, de R$ 5,5 bilhões – que causou furor depois que se revelou que quase R$ 1 bilhão havia ido para a comissão dos bancos coordenadores, nível raramente visto -, era incerto se haveria demanda por uma nova emissão. Para garantir os recursos, o BNDES havia assegurado um crédito para a companhia. “Mas, com demanda forte por debêntures incentivadas, a Aegea preferiu ir a mercado.” Fontes do mercado, no entanto, afirmam que desta vez a Aegea renegociou a comissão com os bancos para níveis mais baixos.
A Cemig está em “roadshow” para uma emissão de R$ 2 bilhões, em duas séries, uma a CDI mais 1,22% (comum, cinco anos) e outra a NTN-B mais 0,45% (incentivada, 10 anos). Segundo Otranto, companhias abertas com a mais alta nota de crédito (“AAA”) emitiam antes do rali a 0,5% acima da NTN-B. Há ainda a CCR, que vai captar R$ 1,25 bilhão por 18 anos a NTN-B mais 1,5%; e a Águas do Sertão (R$ 1,1 bilhão a NTN-B mais 2,65%, por 19 anos).
Embora seja do setor de infraestrutura, a Sabesp anunciou oferta de R$ 2,5 bilhões em debêntures comuns, que também estão com a demanda aquecida, segundo Marcos Garcia, superintendente de mercado de capitais do banco BV, embora o foco esteja nas incentivadas. Ele comenta que os spread das comuns já caíram de 30 a 40 pontos-base (papéis AAA).
“O mercado deu uma chacoalhada. A alta procura por crédito privado isento e do institucional despertou o interesse das companhias”, diz Garcia. De acordo com ele, começou a fazer sentido para o emissor que estava aguardando janela favorável ou a nova regulamentação das debêntures de infraestrutura, de janeiro. “Aumentou a procura dos nomes óbvios. O reflexo nas incentivadas e nas simples foi imediato”, diz Thiago Lobato, chefe da área de mercado de capitais da Inter DTVM.
O mercado deu uma chacoalhada. A alta procura despertou interesse das companhias”
— Marcos Garcia
No fim de janeiro, a concessionária Autopista Planalto Sul, do grupo Arteris, lançou R$ 650 milhões em debêntures em duas séries, sendo uma de incentivadas e outra comum, com prazo de sete e quatro anos. A oferta, portanto, foi a mercado antes do rali que comprimiu os spreads entre 0,3 e 0,8 ponto percentual e saiu a IPCA mais 6,88% ao ano e a CDI mais 2,55%, respectivamente. A demanda pela série em CDI foi de 1,5 vez o valor da emissão e em IPCA, 1,8 vez, conta Otranto.
A da Águas do Sertão também já estava com o preço estabelecido e, segundo um gestor ouvido pelo Valor, com a alta demanda, o aceite de ofertas foi discricionário, o que é incomum no mercado. “O coordenador deu preferência a pedidos de instituições parceiras”, comentou a fonte. Além disso, com a corrida aos papéis, logo nos primeiros dias de negociação, o spread da debênture caiu dos 265 pontos-base para 190.
Os relatos entre os gestores também dão conta de que os bancos coordenadores estão aumentando a parcela que absorvem. Assim, garantem o ganho no secundário, também bastante aquecido. “Bancos de varejo estão podendo estocar papel aproveitando taxa”, afirma Otranto. As tesourarias dessas instituições, inclusive, já registram ganhos com papéis que haviam colocado em carteira, sobretudo entre outubro e dezembro, quando não houve demanda suficiente nas operações, após sucessivas e polpudas ofertas, lembra Ono, da Legacy. “Os grandes bancos sabem que é uma demanda sustentada.”
Felipe Wilberg, diretor de renda fixa e produtos estruturados do Itaú BBA, diz que há uma boa quantidade de títulos incentivados vindo a mercado, mas, dada a escassez de letras e certificados de crédito, a demanda de pessoas físicas também será grande. “Já o mercado de debêntures institucionais, que também está em euforia porque está entrando dinheiro, tem oferta menor, faltou título, e isso comprimiu os spreads. Além disso, temos bancos e fundos com apetite para essas alocações, sem tantos títulos novos. Vai chegar a um ponto em que os bancos não vão comprar mais, se a taxa estiver muito baixa, e aí começa a equilibrar.”
Dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) mostram que as emissões de incentivadas somaram R$ 14,2 bilhões até julho e aceleraram fortemente de agosto a dezembro, para um total de R$ 53,7 bilhões, enquanto as de comuns tiveram um total de R$ 76,5 bilhões e R$ 92,1 bilhões, respectivamente. Em outubro, as operações com isentos (R$ 16,7 bilhões) superaram as de comuns (R$ 12,6 bilhões), pela única vez no ano, e intermediários e demais participantes subscreveram 59%. Em novembro, ficaram com 41,2% e, em dezembro, 65,6%.
O impacto das restrições do CMN pode já estar aparecendo neste mês. Segundo informações da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em janeiro houve 12 registros de ofertas de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) num total de R$ 2,2 bilhões e, em fevereiro até a última quinta-feira, foram 10, num total de R$ 1,1 bilhão, mostrando predominância de projetos menores, restritos ao setor. Já em recebíveis imobiliários (CRIs), das 43 ofertas no mês passado, num total de R$ 3,6 bilhões, o volume caiu para 22 que somam R$ 2,1 bilhões.
Garcia, do BV, explica que, antes das restrições do CMN em 2 de fevereiro, dois fatores já vinham influenciando o mercado, mas não de forma tão aguda: a taxação dos fundos fechados exclusivos/restritos, que neste ano passarão a pagar come-cotas, mas que, no terceiro trimestre de 2023, quando as discussões no Congresso começaram a avançar, deixaram de receber dinheiro novo; e a remodelação das debêntures de infraestrutura, cujo incentivo fiscal passará a ser ao emissor e que pode “desviar” recursos das incentivadas.
Eduardo Correa, vice-presidente de soluções da Ártica, diz que neste momento inicial predominam os emissores recorrentes, que têm estrutura para reagir rapidamente. No nicho em que a Ártica mais atua, o de médias empresas, os programas vêm sendo acelerados e nas próximas semanas a empresa deve levar a mercado quatro ofertas num total de R$ 200 milhões. Lobato, da Inter DTVM, conta que a instituição está revendo as taxas de operações que já estavam em vias de ir a mercado e acredita que estreantes ou emissoras menos frequentes serão beneficiadas num segundo momento.
Wilberg, do Itaú BBA, acha que esse rali não é saudável. “Estamos cautelosamente otimistas com o comportamento da pessoa física, mas um pouco preocupados com a euforia, que não é bem-vinda. É melhor que o mercado esteja equilibrado.”
Fonte: Valor Econômico