Os Estados Unidos vivem um ciclo eleitoral muito atípico. Nunca houve dois candidatos tão idosos, como Joe Biden e Donald Trump. Desde Theodore Roosevelt, em 1912, que um ex-presidente dos EUA não se recandidatava. Nunca dois candidatos dominaram tão amplamente o processo de prévias partidárias. Porém, nunca ambos foram tão rejeitados, tanto por eleitores em geral como de seu próprio partido. Nunca um candidato presidencial enfrentou quatro processos criminais no ano da eleição, como Trump agora.
Começam a surgir sinais, no entanto, de que algo inédito e ainda mais clamoroso pode acontecer. Vem crescendo nos EUA a especulação de que o presidente Joe Biden, mesmo vitorioso nas prévias partidárias democratas, poderia desistir da sua candidatura.
Todas as pesquisas de intenção de voto recentes nos EUA ou dão o republicano Trump à frente ou empate técnico. O democrata Biden não lidera uma pesquisa desde janeiro. Além disso, pesquisas recentes mostram uma rejeição cada vez maior a Biden por conta de sua elevada idade, 81 anos. Numa delas, do jornal “The New York Times”, 73% dos eleitores democratas entrevistados concordaram total ou parcialmente que Biden está velho demais para governar o país de modo eficaz. Essa percepção se reforça a cada gafe ou tropeço do presidente, como na semana passada, quando confundiu Gaza com a Ucrânia.
Um editorial do jornal “The Wall Street Journal” desta semana disse que Biden sofrerá pressão para desistir de sua candidatura, em favor de alguém mais jovem, se em junho ou julho as pesquisas continuarem como estão. O editorial se intitulava “Tempo de pânico para os democratas”.
A mídia americana vem tratando dessa possibilidade de forma discreta, por vezes indireta. Na semana passada o “New York Times” explicava a seus leitores o que acontece se um candidato morrer (e seria o mesmo se ele desistir). Em entrevista em fevereiro, o “Wall Street Journal” questionou a vice-presidente, Kamala Harris, se ela acha que teria de convencer os eleitores de que é capaz de governar, devido à idade de Biden. Ela respondeu que está “sempre pronta para servir”. Já reportagem da “The Atlantic” desta semana diz que a sensatez da decisão de Biden de se candidatar neste ano “está de novo sob intenso escrutínio” e que “historicamente ainda não é tarde demais” para que ele “desista voluntariamente da sua candidatura”.
Por ora, a questão da desistência de Biden é puramente especulativa. Não há nenhuma informação pública de que o presidente esteja cogitando isso ou de que o partido o esteja pressionando ou se preparando para isso. O presidente, em seguidas declarações, vem se dizendo confiante em uma nova vitória contra Trump.
Porém, “todo mundo está especulando sobre isso”, disse ao Valor Abraham Lowenthal, professor emérito de relações internacionais da Universidade do Sul da Califórnia. “Biden envelheceu e está no ar que as pessoas estão preocupadas. Certamente nos círculos mais altos da política americana as pessoas estão conversando sobre possíveis alternativas a Biden.”
Biden deve vencer as prévias partidárias (as primárias) democratas e terá a maioria dos delegados na convenção do Partido Democrata, marcada para agosto. Caso ele desista, seus delegados estarão livres para votar em quem quiserem para candidato presidencial. Ou, possivelmente, em quem a direção do partido apoiar.
Uma troca poderia trazer algumas vantagens para os democratas. Colocaria um candidato novo, talvez com rejeição baixa, contra Trump, mais idoso e com elevada rejeição. Poderia revigorar a campanha e atrair eleitores que ou estão desiludidos com Biden, como jovens e negros, ou estão indo para Trump, como os trabalhadores e hispânicos. Um dos riscos para Biden é que o seu eleitorado não se dê ao trabalho de ir às urnas, por falta de motivação.
Mas a troca traz muitos riscos também. Haveria pouco tempo para promover um candidato talvez ainda pouco conhecido nacionalmente. E não está claro se os democratas possuem um candidato com os requisitos acima: jovem, porém experiente, e que empolgue diferentes parcelas do eleitorado. Não existe nenhum Barack Obama evidente à disposição.
Uma candidata óbvia seria a vice-presidente Kamala Harris. Ela é relativamente jovem (59 anos), poderia ser a primeira mulher presidente, não é branca e vem de uma família de imigrantes. Contra ela, porém, pesam vários fatores. Ela não tem nenhuma experiência legislativa nem executiva (além de ter sido vice-presidente nos últimos três anos). E tem sido uma vice das mais apagadas da história recente dos EUA. Sua taxa de aprovação (de 36,4% no agregador de pesquisas 538) é ainda pior que a de Biden (38,2%).
Nas últimas semanas Kamala parece estar buscando e ganhando mais visibilidade. Ela falou sobre Gaza com um tom crítico ao governo de Israel (muitos democratas criticam o apoio incondicional de Biden à ofensiva militar israelense), num discurso que parecia mais dirigido ao público interno nos EUA.
Outro nome forte no Partido Democrata é o governador da Califórnia, Gavin Newson, de 56 anos. No ano passado ele percorreu o país e parecia disposto a lançar uma candidatura presidencial, o que acabou não acontecendo. Apesar de não ser bem avaliado nas pesquisas pelo eleitorado predominantemente democrata da Califórnia, Newson era um empresário bem-sucedido antes de entrar na política e é considerado um moderado no partido, o que poderia atrair eleitores independentes.
Outras estrelas em ascensão no Partido Democrata são os governados da Pensilvânia, Josh Shapiro (50 anos), e de Michigan, Gretchen Whitmer (52 anos). Ambos são de Estados decisivos na corrida eleitoral americana. Há ainda o governador do Kentucky, Andy Beshear (46 anos), que foi eleito e reeleito num Estado fortemente republicano e que poderia captar votos nos Sul dos EUA, mais conservador.
“O momento político atual é um dos mais incertos da história americana. Há ao mesmo tempo instabilidade e estagnação na política, e isso preocupa a muita gente”, disse Lowenthal.
Essa estagnação está refletida no repeteco Biden-Trump na eleição presidencial. Uma pesquisa da Associated Press desta semana mostra que 60% dos americanos não querem nem Biden nem Trump como candidatos.
“É difícil para um presidente desistir da candidatura, mas não é impossível. Uma questão médica qualquer pode dar um pretexto”, afirma Lowenthal. Ele recorda o caso de Lyndon Johnson, que desistiu da reeleição no começo das prévias partidárias em 1968, ainda que tivesse boas chances de ser o candidato democrata. Johnson desistiu quando o então jovem senador Robert (Bob) Kennedy entrou na disputa. Bob acabaria assassinado durante o período de prévias partidárias.
Outro democrata, Harry Truman, também desistiu de disputar a reeleição no início das primárias, em 1948. Tanto Truman como Johnson desistiram em março do ano da eleição. Nos dois casos, o Partido Democrata perdeu a eleição presidencial, o que parece não favorecer uma troca de candidato. Mas a história nem sempre se repete.
“Eu ainda acho improvável [a desistência de Biden], mas essa possibilidade certamente está crescendo, já é um cenário plausível”, disse o professor americano. “Já deve ter gente trabalhando nessa possibilidade.”
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Biden faz pronunciamento sobre direito ao aborto ao lado da vice Kamala Harris — Foto: Evan Vucci/AP
Fonte: Valor Econômico

