Pesquisa mostra que a presença de medicamentos para aumentar o desempenho nas corporações é comum e divide opiniões
Por Stela Campos — De São Paulo
O uso de fármacos por pessoas saudáveis para acelerar o desempenho no trabalho, também conhecidos como “smart drugs”, vem chamando atenção no mundo corporativo. Uma pesquisa realizada com profissionais do C-level de grandes empresas do país mostra que 90% estão convencidos de que alguém da sua empresa recorre a elas para suportar o estresse no trabalho. E, embora 92% achem que o uso desses medicamentos trará consequências ruins no longo prazo, 38% acreditam que a ingestão dessas substâncias é uma questão privada e não das empresas.
“O perigo é que elas são drogas silenciosas que produzem comportamentos valorizados”, alerta Alessandra Lotufo, Chief Innovation and Communication Officer da House of Brains e responsável pelo estudo “Felicidade artificial: ética e dependência química nas organizações”. No levantamento, conduzido pelo núcleo de pesquisas da Bossa.etc, dos 260 executivos que receberam o questionário, 62 responderam, sendo 57% diretores e membros de conselho de empresas, 27% delas com faturamento acima de R$ 20 bilhões.
O assunto ainda é tabu na maior parte das companhias, enfatiza Lotufo, mas precisa ser endereçado pela alta liderança para que esses hábitos não se tornem parte de uma cultura organizacional que busca maior produtividade a qualquer custo.
Quando o exemplo, no entanto, vem do próprio alto escalão, a situação pode fugir do controle. Entre os pesquisados, 74% acreditam que funcionários cujos gestores fazem uso desses fármacos para aumentar o desempenho podem se sentir coagidos a usá-los também. Inclusive, 64,5% acreditam que o uso de “smart drugs” proporciona uma “vantagem injusta” em relação aos profissionais que não as utilizam e isso pode alterar os parâmetros de meritocracia da empresa. “Não existem ainda estudos conclusivos no campo científico sobre a efetividade desse uso de ‘smart drugs’ na performance, mas trata-se de um drama ético que está nas mãos do RH”, diz Lotufo.
Metade dos pesquisados acha que existe uma aceitação explícita ou tácita para o uso de fármacos no trabalho. Além disso, 61% consideram que a exigência crescente dos gestores para aumentar o desempenho é determinante para o consumo. Para 74,2%, as metas são as grandes vilãs e 56,5% acreditam que a busca pela alta performance é o gatilho para a adesão aos medicamentos.
Um dos motivadores para o uso dessas drogas é a pressão por entregas”
— Daniela Bauab
Na dissertação que acaba de defender para o mestrado na Fundação Getulio Vargas (FGV) – “Doping corporativo: Quais os impactos do uso de medicamentos para aumento de produtividade por executivos nas organizações?”, Daniela Bauab, Chief Operating Officer da BMI, colheu depoimentos de vários executivos e executivas, principalmente do mercado financeiro, entre 45 e 61 anos de idade, que se medicam para trabalhar. A maior parte usa Pharmaceuticals Cognitive Enhancers (PCE), como são denominadas as drogas que demonstram melhorar, até certo ponto, algumas características de cognição humana, como atenção, funcionamento executivo (planejamento, desinibição e resolução de problemas), memória e aprendizagem por meio da alteração de neurotransmissores.
Entre os remédios mais utilizados por pessoas saudáveis para aumentar o desempenho estão os destinados ao tratamento de doenças neurodegenerativas, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e narcolepsia. “Os executivos contam que um dos motivadores para o uso dessas drogas é o fato de se sentirem pressionados por entregas”, conta Bauab.
Muitos, segundo ela, afirmam usar os fármacos apenas durante a semana e não nos fins de semana ou férias, porque focam no uso para o trabalho. Bauab diz que, nos relatos, eles dizem que ao usar as “smart drugs” conseguem produzir com mais energia, mas ao mesmo tempo sofrem com a privação do sono e a falta de apetite. “Eles dormem muito pouco e usam o tempo acordados para trabalhar”, diz. “Na maior parte dos casos, eles tomam um remédio para ficarem ligados e outro para conseguir dormir.”
Em alguns relatos, segundo a pesquisadora, aparece uma espécie de dependência psicológica ao remédio, baseada no medo de ganhar peso ou de não ter mais a mesma performance se pararem de usar o medicamento.
Um efeito negativo desse “doping intelectual”, admitido pelos usuários, é que ele parece diminuir o poder de escuta. “Eles dizem que prejudica algumas análises estratégicas e o seu senso crítico, porque aumenta o foco e o ritmo de trabalho numa batida muito imediatista”, conta Bauab. Mas, mesmo com essa entrega acelerada, nenhum entrevistado relatou que foi promovido ou teve o aumento da sua produtividade percebido, diz. “Eles falam apenas sobre ganhos em relação aos competidores externos.”
Na pesquisa “Felicidade Artificial”, 67,7% dos respondentes dizem que o uso de estimulantes pode levar a uma cultura organizacional onde se aceita que os profissionais trabalhem mais horas, assumam cargas mais intensas e suportem um ritmo mais acelerado.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2024/A/s/jJXYxxQryUXdiupP2gqw/arte29carr-102-lotufo-b2.jpg)
Alessandra Lotufo observa dois movimentos contrários em curso. O primeiro reúne aqueles que defendem o uso de “smart drugs” como uma opção individual. “Outro grupo acredita que o uso desses medicamentos, de alguma forma, em algum momento, vai ser um problema para a sociedade, como aconteceu com outras drogas, como a cocaína nos anos 80 e que está voltando com força pela característica de, em um primeiro momento, deixar a pessoa funcional”, diz.
As razões para que tantos profissionais estejam embarcando nesse doping corporativo, segundo Lotufo, é tema de diversos estudos. Muitos indicam que as “smart drugs” podem estar relacionadas ao fato de as neuroses e a depressão associadas ao trabalho terem mudado ao longo do tempo. “Desde a primeira metade do século 20, existia o medo da desumanização por conta da criação das linhas de produção, dos trabalhos repetitivos. Vivíamos em uma sociedade opressora e a questão era o que eu podia ou não fazer. Era a neurose da repressão”, afirma.
A evolução para uma sociedade cada vez mais digital, autocentrada, segundo ela, criou um outro tipo de demanda. “Nem todo ser humano dá conta de tanta autonomia, existe mais liberdade, mas a pessoa se sente mais perdida. Existe pressão para que o profissional performe, se auto promova nas redes sociais e ainda tenha habilidades emocionais”, explica.
Não à toa, existe um aumento dos problemas relacionados à saúde mental nas organizações, diz Lotufo. “É a pressão da autonomia, das entregas rápidas, que deixa todo mundo exausto. Faltam momentos de ócio criativo, estamos enfrentando o cansaço contemporâneo, como diz o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han”, enfatiza.
Ela cita alguns pontos de atenção para as organizações sobre como lidar com a proliferação das “smart drugs” nos ambientes de trabalho. “Será que os gestores estão preparados para lidar com equipes turbinadas por remédio? Será que eles sabem lidar com equipes onde apenas uma parte usa “smart drugs”? Será que quem usa “smart drugs” merece o mesmo bônus de quem não usa?”.
Muitas respostas virão com o tempo, diz, “mas cabe às empresas levantar essa discussão e não esconder debaixo do tapete.”
Alguns números demonstram o avanço desses suplementos que potencializam o cérebro, diz Lotufo. “Eles já movimentam US$ 1 bilhão, segundo o British Medical Journal”, ressalta. E, acrescenta: “Segundo a Organização Mundial de Saúde, 15% dos remédios vendidos no mundo são falsificados e segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, 28% dos brasileiros admitiram adquirir medicamentos tarja preta sem receita”, afirma.
A clandestinidade e a facilidade de acesso via grupos de aplicativos de mensagem, onde existem cardápios à disposição do usuário, que sem prescrição médica pode escolher o tipo de remédio e a dosagem, que podem ser falsificados, segundo a pesquisadora, é um dos maiores perigos para que esse quadro de doping corporativo continue crescendo e colocando em risco a vida das pessoas e a saúde nas organizações.
Fonte: Valor Econômico