Até um ano atrás, o laboratório farmacêutico dinamarquês Novo Nordisk estava nas alturas. Havia sido o primeiro a comercializar um remédio injetável contra a diabetes e o nome Ozempic logo havia virado sinônimo de uma nova classe de medicamentos de sucesso bombástico que ajudavam na perda de peso.
Desde então, contudo, os concorrentes começaram a recuperar o terreno perdido, o ensaio clínico de uma nova droga foi uma decepção, as ações e o lucro passaram a cair e seu executivo-chefe saiu da empresa em maio. Na terça-feira (29), anunciou uma grande revisão para abaixo em suas previsões de ganhos, o que a fez perder mais de 60 bilhões de euros do valor de mercado. A companhia também anunciou que o novo executivo-chefe (CEO) será Maziar Mike Doustdar, um alto executivo que já trabalha na Novo Nordisk.
Algumas vozes no setor acham que o problema central da Novo Nordisk é bastante simples: a rival americana Eli Lilly desenvolveu um produto melhor. Ensaios clínicos mostraram que o Mounjaro e o Zepbound, da Eli Lilly, permitem uma maior perda de pesa do que o Ozempic e o Wegovy, outro medicamento da Novo Nordisk, e, segundo relatos casuais de médicos, têm menos efeitos colaterais.
“Você não tem como mudar magicamente o perfil do produto”, disse Gareth Powell, gerente de fundos especializado na área de saúde na gestora de ativos Polar Capital, acionista de ambas as empresas.
Agora, muitos acionistas e analistas avaliam que, em última análise, o domínio do mercado é da Eli Lilly. O diretor-gerente da área de saúde no banco de investimento Stifel, Tim Opler, disse que a Eli Lilly trabalhou em “velocidade dobrada” para comercializar seus medicamentos. “A Lilly simplesmente superou a Novo”, disse.
Na terça-feira, Doustdar argumentou que ainda há grandes oportunidades para a Novo Nordisk no mercado de perda de peso e que a empresa tem uma carteira de drogas em desenvolvimento para aproveitar essas oportunidades.
“Este é um mercado com mais de 1 bilhão de pacientes e uma enorme necessidade não atendida”, disse Doustdar. “Acho que estamos muito bem posicionados com nossas capacidades fabris, nossa ciência, nossas atividades comerciais e com o reconhecimento da marca.”
As turbulências na Novo Nordisk chegam na esteira de sucessos extraordinários para a empresa — as ações, em seu auge em junho de 2024, chegaram a acumular valorização de quase 300% em três anos, diante do grande aumento na demanda por medicamentos para a perda de peso.
No entanto, mesmo antes do alerta sobre os lucros na terça-feira, já havia sinais preocupantes nos dados sobre as receitas médicas prescritas por profissionais de saúde dos Estados Unidos.
A Novo Nordisk foi a primeira a ganhar aprovação das autoridades reguladoras nos EUA para seus novos tratamentos para a perda de peso e contra a diabetes: o Ozempic foi aprovado para tratar a diabetes em 2017 e o Wegovy para a obesidade em 2021.
Apesar de liderar a participação de mercado desde então, os dados de julho sobre as receitas médicas mostram que o Ozempic caiu para menos de 50% pela primeira vez. De acordo com a empresa de análises IQVIA, as receitas médicas para o Mounjaro da Eli Lilly somavam mais de 622 mil por semana, em comparação às 607 mil para o Ozempic, enquanto o Zepbound já havia ultrapassado o Wegovy.
Emily Field, analista do Barclays, comparou a queda da cotação da Novo Nordisk nos últimos 12 meses a um “acidente de carro em câmera lenta”, à medida que a empresa foi perdendo terreno para a Eli Lilly, tanto nas vendas de medicamentos para a perda de peso já existentes quanto nos que ainda estão em desenvolvimento. As ações da Novo Nordisk agora acumulam desvalorização de 60% nos últimos 12 meses, em comparação a uma queda de 6% nos papéis da Eli Lilly.
Alguns consideram injusto atribuir ao ex-CEO Lars Fruergaard Jørgensen a culpa por não ter mantido as ações em “alturas ridículas”, nas palavras de uma fonte próxima à Novo Nordisk.
“Eles foram uma empresa incrivelmente bem-sucedida. O ex-CEO fez coisas incríveis. Apesar de todas as críticas de que o preço das ações caiu, [na verdade] elas haviam subido muito”, disse Powell.
Ele acrescentou que, em termos comerciais, o grande número de pessoas obesas e com sobrepeso é um fator positivo. “O mercado ainda é ínfimo em termos de penetração. Então, você sabe, ainda [falando] em teoria, é uma enorme oportunidade.”
Para outros, a Novo Nordisk deu passos em falso antes mesmo de lançar os medicamentos, ao não se preparar bem para a demanda. Depois, não mudou de estratégia rápido o suficiente nos EUA, quando ficou claro que as pessoas estavam dispostas a prescindir de seu seguro-saúde e a pagar pelos medicamentos de perda de peso por conta própria.
De início, a Novo Nordisk teve dificuldades para atender a uma demanda muito maior do que a imaginada. Evan Seigerman, analista do banco de investimento BMO Capital Markets, disse que o laboratório farmacêutico, em parte, baseou suas previsões de vendas em seu medicamento anterior, Saxenda, que não é tão eficaz na perda de peso.
No entanto, a fonte próxima à companhia disse que, embora olhando de forma retrospectiva o mercado tenha se mostrado enorme, “teria sido loucura prever” um surto inicial na demanda como aquele, e que a Novo Nordisk precisava ter o cuidado de não produzir demais e ficar sem poder vender o que passasse da validade.
Desde então, segundo fontes, a Novo Nordisk incrementou a produção ao adquirir fábricas da fornecedora Catalent.
Ainda assim, alguns analistas acreditam que esse erro inicial de cálculo teve um efeito mais duradouro.
Quando médicos e pacientes viram que tinham dificuldade para obter os remédios da Novo Nordisk, eles migraram para a Eli Lilly ou para réplicas, que na época haviam sido permitidas, e, depois, não voltaram mais para a empresa dinamarquesa. A Eli Lilly também teve problemas iniciais de fornecimento, mas os solucionou mais rápido.
Ao mesmo tempo, a Novo Nordisk lançou seus produtos em outros países enquanto ainda tentava incrementar o fornecimento nos EUA. De acordo com Seigerman, o lançamento em vários países costuma ser o “modus operandi” da empresa. “Eles vão fornecer e garantir o suprimento para seus mercados, mesmo que isso seja menos lucrativo”, disse.
Depois, houve a questão do marketing. A Novo Nordisk parece ter encontrado dificuldades iniciais para fazer a transição de um negócio baseado em grande medida na venda de produtos de insulina — no qual se valia de pesquisas para convencer clínicos — para um mercado de perda de peso que gira mais em torno a consumidores e celebridades. “Era um território completamente desconhecido”, disse outra fonte próxima à empresa.
Field disse que as pessoas estavam “muito céticas” quanto à estratégia comercial da Novo Nordisk, em comparação com a abordagem “muito mais incisiva” da Eli Lilly. “As pessoas acham que a Novo foi complacente demais em sua estratégia de lançamento, apostando na força do perfil do medicamento, em vez de ser mais proativa para leva-lo às mãos dos pacientes.”
A Eli Lilly percebeu mais rápido a diferente dinâmica do mercado e, no início de 2024, lançou o LillyDirect para vender medicamentos diretamente aos pacientes a preços mais baixos. A Novo Nordisk só seguiu o exemplo em março deste ano, com um serviço parecido chamado NovoCare. O laboratório farmacêutico dinamarquês também assinou um acordo exclusivo com a administradora de benefícios farmacêuticos americana CVS Caremark, que recentemente fez do Wegovy seu medicamento preferencial de combate à obesidade.
A Eli Lilly, que tem sede nos EUA, pode ter tomado decisões diferentes graças a uma “vantagem cultural”, segundo Seigerman. “A Lilly tinha a compreensão [necessária] para ler bem o ambiente […] quando se trata das nuances dos Estados Unidos e de um mercado de saúde em transformação”, disse.
Agora, os investidores já dirigem os olhares para a próxima geração de tratamentos contra a obesidade, na qual acreditam que a Eli Lilly também está em posição de vantagem.
Em dezembro, as ações da Novo Nordisk tiveram forte queda, afetadas pelos resultados decepcionantes de seu novo remédio injetável para a perda de peso, o CagriSema. Analistas reclamam que a empresa exagerou ao divulgar a possibilidade de perda de peso média de 25%, sem advertir que os pacientes podiam controlar a dose que queriam ingerir, potencialmente interferindo nesses números. Os resultados mostraram que os participantes do ensaio clínico perderam, em média, 23% de seu peso corporal. Para o Wegovy, a média é de 16%, e para o Mounjaro, da Eli Lilly, de 21%.
De acordo com Powell, embora os investidores tenham criticado o não cumprimento da meta de perda de peso, o CagriSema ainda pode ter um “lançamento surpreendentemente bom”, se os médicos o considerarem eficaz.
Ele acrescentou, porém, que a Novo Nordisk precisa acelerar sua linha de produtos em desenvolvimento ou fazer aquisições. A empresa, de fato, comprou vários remédios em estágio inicial de desenvolvimento, mas a maioria desses possíveis medicamentos para a perda de peso provavelmente não chegará ao mercado antes do fim da década.
Powell disse que a Novo Nordisk precisaria agir ainda mais rápido se o comprimido contra a obesidade da Eli Lilly, orforglipron, que pode ser lançado em 2026, tiver um bom perfil em termos de efeitos colaterais.
“Se isso estiver bem, acho que tem potencial para um lançamento muito rápido. Isso poderia impactar o mercado de injetáveis, o que seria, obviamente, um ponto de pressão adicional para a Novo”, disse.
A Novo Nordisk apresentou às autoridades reguladoras uma versão oral da semaglutida, o princípio ativo do Ozempic e do Wegovy. Field ressalta, contudo, que, embora seja um comprimido, os pacientes ainda precisariam ter cuidado ao tomá-lo, pois não pode ser ingerido com comida, bebida ou outros medicamentos. A Novo Nordisk não acredita que isso venha a ser um grande problema, segundo uma fonte próxima à empresa.
Field acrescentou que a Novo Nordisk fez uma “aposta realmente grande” no CagriSema, enquanto a Eli Lilly diversificou mais suas apostas. “A Lilly estava atirando para vários lados, tentando ver o que poderia acertar.”
Embora a Eli Lilly seja a maior ameaça para a Novo Nordisk no momento, ambas as empresas também enfrentam outros concorrentes já que laboratórios farmacêuticos como Roche, Amgen e AstraZeneca desenvolvem medicamentos rivais.
Segundo fonte próxima à Novo Nordisk há um reconhecimento de que a empresa precisa ter mais foco no consumidor e “entusiasmo” em encontrar a estratégia certa. “Eles estão discutindo ‘como vamos virar este grande navio?’.”
O alerta sobre os resultados feito nesta semana e a resposta do mercado reforçam a urgência da tarefa nas mãos de Doustdar. Horas após sua nomeação, quando perguntado sobre a queda das ações, ele deu uma resposta direta.
“Minha mensagem é que eu não gosto disso: não gosto como funcionário, não gosto como CEO eleito — e certamente não gosto, eu mesmo, sendo um acionista. Mas contratempos não definem companhias. Nossa resposta, sim.” (Colaborou Michael Peel. Tradução de Sabino Ahumada)
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Fonte: Valor Econômico