Só nos Estados Unidos, cânhamo industrial rendeu quase US$ 1 bilhão em 2021. Quem defende o cultivo vê benefícios a mais de 20 setores da economia
Por Eliane Silva — Ribeirão Preto (SP)
11/06/2023 09h13 Atualizado há 2 dias
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Uso medicinal tem sido destaque nas discussões sobre liberação da cannabis, mas outros setores miram potencial de mercado para a planta 7raysmarketing/Pixabay
O uso medicinal tem ficado mais em evidência quando se fala em liberação do cultivo de cannabis sativa e comercialização de produtos à base da planta no Brasil. Recentes decisões judiciais, inclusive, têm permitido o plantio por pacientes em tratamento para diversas doenças. Em São Paulo, por exemplo, uma lei sancionada no início deste ano regulamenta o fornecimento de medicamentos à base de cannabidiol no sistema de saúde.
Mas as possibilidades vão muito além da medicina. Em várias partes do mundo e também no Brasil, pesquisadores, empresas, celebridades e até mesmo produtores rurais estão de olho nesse potencial e em como fazer da planta um produto do agronegócio ou, até mesmo, uma commodity global.
Um desses agricultores é Ricardo Arioli, sócio da Agropecuária Novocampo. A empresa planta 2 mil hectares de soja e cria 2 mil cabeças de gado em Campo Novo do Parecis (MT), município também conhecido como a capital nacional do milho pipoca.
“Recebo muitos produtores de outros países na minha fazenda e gosto de estar sempre antenado com as tendências. Há 3 anos, li uma notícia de que, nos Estados Unidos, muitos agricultores estavam ganhando dinheiro com a produção de hemp para medicamentos e fibras e pensei que seria uma boa oportunidade de negócios para nós no Brasil”, diz Arioli.
O “hemp” que ele menciona é o cânhamo industrial, uma das subespécies da cannabis sativa e que, no Brasil, foi popularizada como a maconha. A planta começou a ser cultivada há pelo menos seis mil anos para a produção de medicamentos, alimentos e fibras.
Apenas em 2021, o mercado de cânhamo industrial movimentou US$ 824 milhões nos Estados Unidos e US$ 1,7 bilhão na China. No Brasil, o cânhamo chegou com os portugueses, que usavam a fibra nas velas das embarcações.
Na época do império, o Brasil tinha no Rio Grande do Sul a Real Feitoria do Cânhamo e Linho. O produto beneficiado no país era exportado para Portugal. Há pouco mais de 80 anos, o cultivo foi proibido, uma decisão – a exemplo do que ocorre em outros países – atrelada às propriedades psicoativas da cannabis, como a sensação de euforia causada no seu uso recreativo.
No entanto, a cepa que produz o cânhamo industrial tenha menos de 0,3% de tetraidrocanabinol (THC), composto causador do efeito. Além disso, afirmam especialistas, a planta de cânhamo desenvolvida geneticamente para fibras, alimentos e também medicamentos é mais alta e “magra” que a popular maconha.
Consultorias, empresas e associações que atuam nesse mercado estimam que em cinco anos o cânhamo deve movimentar US$ 30 bilhões no mundo. A Prohibition Partner, empresa inglesa de análise de mercado, aposta mais alto: estima que, em 2022, as vendas globais já somaram US$ 45 bilhões e podem chegar a US$ 101 bilhões até 2026.
No Brasil, o potencial com a legalização do cultivo, comercialização e exportação é projetado em US$ 5 bilhões por ano pela Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann). A Kaya Mind, empresa brasileira especializada no segmento, estima que em 2022 o mercado de medicamentos à base de cannabis, o único regulado, movimentou R$ 363,9 milhões no país e deve dobrar neste ano.
Gaúcho radicado em Mato Grosso, Ricardo Arioli afirma ter ficado surpreso ao conhecer outras possibilidade e mercados para a cannabis. De outro lado, se diz “inconformado” com o fato da pesquisa de variedades da planta só ser permitida no país com autorização judicial.
“A cultura ficou com pecha negativa por causa da maconha, mas pesquisas lá fora já provaram que o cânhamo industrial não tem propriedades psicoativas. Falta autorizar a pesquisa aqui e identificar as variedades que podem ser plantadas sem risco e com alta produtividade”, diz ele.
Ele afirma que tem procurado parcerias com universidades e institutos de pesquisa que tenham autorização para colocar a sua própria fazenda como área experimental para o cânhamo. Representante do comitê de fibras na Confederação Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Arioli acredita que o agro do Estado do Mato Grosso tem muito potencial de plantio.
“Lembro que o cultivo do algodão se desenvolveu muito aqui. Hoje, o Estado é o líder do ranking nacional, reconhecido em todo o mundo pela qualidade. Pelas informações, o cânhamo produz uma fibra mais longa e de excelente qualidade e pode ser uma opção bem lucrativa de rotação com outras culturas”, explica.
Moda
Da porteira para fora, quem também tem muito interesse na legalização do cultivo do cânhamo industrial no Brasil é o setor da moda, afirma a empresária e advogada especializada em moda e negócios internacionais Ana Fábia Ferraz Martins, de Curitiba (PR). Ela criou a Hemp Fashion, uma startup voltada à produção de roupas, cosméticos e acessórios com fibras de cânhamo, mas o negócio não avançou por falta de matéria-prima a preços competitivos.
“Eu sempre gostei de moda e, a partir de 2021, me interessei pelo cânhamo industrial por ser uma opção para uma moda regenerativa, sustentável. A planta regenera o solo, produz fibras mais longas que o algodão, usa menos químicos e representa uma oportunidade de reduzir o prejuízo gerado pela indústria da moda, uma das que mais consome recursos naturais”, diz.
Ana Fábia afirma que, diante do sucesso do cânhamo no mundo, alguns designers autorais brasileiros estão buscando acesso ao tecido produzido lá fora, mas tropeçam nos entraves de importação e no preço.
“A França é a maior produtora e importadora da Europa, embora tenha uma legislação bem repressiva contra o uso recreativo da cannabis. Com sua grande eficiência no agro, o Brasil poderia produzir a fibra curta e a longa a preços competitivos até para exportação”, avalia.
O Brasil importa fibras de cânhamo, apesar do produto não estar na lista dos autorizados para importação. Um levantamento da Kaya Mind apontou que o país importou mais de 100 toneladas de cânhamo bruto entre 1999 e 2021, principalmente da China. Só no período de 2020 e 2021, foram importadas 13,5 toneladas.
Nos Estados Unidos, onde vários Estados autorizam o cultivo da planta mediante licenças e fiscalização desde que a Farm Bill de 2018 regulamentou a produção em nível federal, o mercado está em expansão. Celebridades como os rappers Jay-Z, Drake e Snoop Dog, o guitarrista Carlos Santana, o ex-jogador da NBA Shawn Kemp e as atrizes Whoopi Goldberg e Gwyneth Paltrow já lançaram roupas e outros produtos feitos com hemp.
No Brasil, a atriz Marina Ruy Barbosa anunciou uma coleção com roupas produzidas com a planta da família da maconha, mas atualmente sua marca não tem nenhuma peça feita com cânhamo.
Ana Fábia cita como exemplo de negócio de sucesso no mundo da moda cânhamo uma empresa da Romênia, a De Ionesco, que produz roupas masculinas e exporta para vários países. No site da empresa, uma jaqueta de cânhamo custa US$ 450, fora o frete. “A Romênia tem muita tradição no beneficiamento da fibra de cânhamo, que exige um equipamento especial, diferente do maquinário do algodão.”
Segundo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), há 30 anos, a Romênia era a maior produtora de cânhamo da Europa, o plantio teve um forte recuo pela repressão e vem sendo reativado nos últimos anos. No país, a produção e consumo de cannabis para fins recreativos continuam proibidos, mas é permitido o cultivo do cânhamo com menos de 0,2% de THC para fins medicinais e para produção de fibras e alimentos.
Separar “joio do trigo”
Thiago Ermano, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), diz que o cânhamo pode se tornar uma commodity, como a soja e o milho. Ele estima que sua legalização beneficiaria pelo menos 21 setores econômicos no Brasil. Para ter escala, o cultivo tem que ser feito a céu aberto e a produção deve passar pelas agroindústrias.
Mas, para que essa legalização aconteça, é preciso, nas palavras dele, “separar o joio do trigo” e desmistificar a temática da cannabis no país. “Um ultraconservador muda de opinião em 10 minutos depois que conhece a realidade e potencial da planta. É uma biotecnologia milenar que chega para gerar vida, economia e recuperação ambiental.”
A própria associação teve que derrubar barreiras para ser registrada em cartório. Isso só foi possível depois que a Anvisa publicou em 2019 a RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) 327, que permite a empresas importar e fabricar produtos medicinais derivados da cannabis.
A Abicann reúne pequenas e médias empresas, laboratórios, indústrias internacionais de medicamentos e empresas que trabalham com tecnologias sustentáveis e inovação. Ermano acredita que, embora esteja atrasado em relação ao mundo, até 2025 o Brasil já deve ter formado um ambiente para o plantio comercial do cânhamo industrial.
“Temos capacidade de controlar os cultivos e a genética para produzir de forma legal e exportar para 95 países que já têm regulação. Ou trazemos essa economia para o Brasil ou continuamos a ser um país de importados, inclusive com brasileiros produzindo lá fora e mandando para cá.”
Fonte: Valor Econômico