Esper Kallás diz que instituto prevê volume de doses capaz de conter disseminação da dengue
Por Marcos de Moura e Souza — De São Paulo
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O médico infectologista Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan, está otimista em relação ao que espera ser a primeira vacina brasileira contra a dengue. Seu plano é encaminhar até setembro à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) os dados dos testes do projeto de vacina feitos com quase 17 mil voluntários.
Os estudos começaram em 2013 e agora, em fevereiro, os resultados saíram no periódico científico “The New England Journal of Medicine”. O imunizante, com quatro vírus da dengue atenuados, evitou a doença em 79,6% dos voluntários por um período de dois anos.
Kallás prevê que a vacina seja aprovada e esteja disponível ao longo de 2025. Será um feito. Hoje, poucos laboratórios dispõem de vacina contra a doença. O japonês Takeda lidera essa corrida e fornece lotes para o Ministério da Saúde – no entanto, num volume aquém do que é a demanda do país. A dengue atinge neste ano o Brasil com uma intensidade sem precedentes. Regiões do nundo que antes não registravam casos também estão sentindo os efeitos da doença. “A intenção é entregarmos o número de doses suficiente para que, de fato, causem impacto na cadeia de transmissão do vírus”, disse Kallás. A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: O pico de casos de dengue está fazendo com que o Butantan acelere os trabalhos para tentar antecipar a aprovação da vacina?
Esper Kallás: Nós vamos fazer o máximo que pudermos. É uma necessidade de saúde pública. Muitos Estados estão entrando com pedidos para a gente apressar os nossos processos. Estamos vivendo um momento muito delicado. Por outro lado, não podemos entregar nada que não seja o melhor produto que possamos desenvolver para o Brasil. Temos que balancear essas expectativas e trabalhar com produto da melhor qualidade possível, respeitando todas as normas exigidas para termos um produto seguro e eficaz para o país e, esperamos, que para o mundo inteiro.
Valor: Todos os voluntários já tiveram seus resultados analisados?
Kallás: O último voluntário completa a última fase de acompanhamento no meio do ano. Mas o que nós temos já é suficiente para entregarmos à Anvisa o pacote de informações clínicas sobre a fase 3 [a última fase dos testes]. Esse pacote está consolidado. Estamos só vendo os detalhes finais. Temos agora reuniões regulares com a Anvisa para discutir tudo o que estamos submetendo, tudo o que eles gostariam de ver e eventuais ajustes.
Valor: Quando o Butantan vai submeter os dados à Anvisa para buscar aprovação para a vacina?
Kallás: Colocamos uma data como alvo que é setembro de 2024. Mas é um processo dinâmico de discussões com a agência. Pode ser que, por exemplo, eles entendam que algumas informações não estejam suficientemente detalhadas. Ou seja, podem ocorrer atrasos e ao mesmo tempo estamos trabalhando para tentar antecipar.
Valor: Qual o cenário que o senhor considera como o mais realista para que a futura vacina do Butantan contra dengue comece a estar disponível?
Kallás: Primeiro, quero dizer que diálogo entre o Butantan, a Anvisa, o governo de São Paulo e o Ministério da Saúde tem sido muito bom. Temos um ambiente bastante favorável para levar essa discussão adiante. Segundo, o Butantan ainda precisa trabalhar nos seus processos produtivos. Nós já temos uma fábrica que precisa passar por algumas revisões de processos para a tentarmos aumentar a nossa capacidade. Pretendemos ter essa vacina disponível em 2025, depois de ela passar pela Anvisa e pela Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde] e chegar então à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e ao Ministério da Saúde. Ainda prefiro não dizer qual o mês de 2025 estamos projetando porque ainda não temos todos os ingredientes. Estamos no início de março e temos cerca de um ano para buscar tudo o que precisamos fazer. O ritmo de trabalho tem sido frenético e esperamos que em 2025 a vacina esteja disponível.
Valor: Por que uma vacina cuja ideia original começou a ser desenvolvida nos EUA entre os anos 1980 e 1990 começa só agora a se tornar realidade, como é o caso da vacina do laboratório Takeda e, possivelmente, do Butantan?
Kallás: A dengue ficou durante muito tempo abaixo do radar das empresas farmacêuticas. Era uma doença mais restrita aos trópicos, que acometia pessoas em regiões delimitadas do planeta e, infelizmente, a gente sabe que existe uma tendência de se valorizar alvos como produtos farmacêuticas que ofereçam um ganho econômico maior pela grande indústria. Doenças que ficam abaixo desse radar, especialmente do apelo econômico para a grande indústria, são chamadas de doenças negligenciadas. É o caso também da malária, que mata mais de 1 milhão de crianças por ano.
Valor: E por que a dengue começou a aparecer nesse radar?
Kallás: Porque ela deixou de ser uma doença regional do sudeste da Ásia para ser uma doença mundial. Pelo o vírus se espalhar pelas regiões tropicais e subtropicais do planeta, já existem reconhecidamente 3 bilhões de pessoas suscetíveis à dengue todos os anos. E ainda há outro ponto. O aquecimento do planeta vai favorecendo a multiplicação do mosquito em regiões onde o mosquito não existia antes. Hoje a dengue é identificada no sul da Flórida, no Texas, no sul da Califórnia, no sul da Itália. Locais onde não havia ocorrência.
Valor: A tecnologia para uma vacina contra a dengue tem sido um limitador para laboratórios?
Kallás: Estamos falando não de uma vacina, mas de quatro vacinas em uma só. É preciso ter os quatro componentes [das variantes 1, 2, 3 e 4 do vírus] com desempenho equilibrados. Esse é um pré-requisito estabelecido pela Organização Mundial da Saúde.
Valor: Ou seja, não adianta uma vacina que proteja contra um ou dois tipos de vírus da dengue?
Kallás: A resposta é não. Quando a pessoa pega dengue pela segunda vez ela pode ter uma gravidade maior do que da primeira. Então, se eu faço uma vacina contra somente um tipo de vírus e tem outros três circulando, eu posso, artificialmente, criar uma situação de maior suscetibilidade a uma doença grave. Por isso é preciso ter quatro vacinas em uma só e foi a necessidade desse equilíbrio que fez com que muitas candidatas a vacina desenvolvidas no passado tenham falhado.
Valor: Em 2025 qual será a capacidade de produção no Butantan da futura vacina de dengue?
Kallás: Nós ainda não temos esse número pronto. Não tenho como falar quantas doses seremos capazes de produzir e entregar e em que prazo, mas a intenção entregarmos o número de doses suficiente para que, de fato, causem impacto na cadeia de transmissão do vírus. E acho que o que conseguirmos produzir será absorvido pelo Ministério da Saúde.
Valor: Qual será a relevância da vacina da dengue para o Butantan?
Kallás: 2024 e 2025 prometem ser os anos em que Butantan lançará as duas das principais vacinas para combater doenças transmitidas por mosquito: a vacina contra dengue [em 2025] e a vacina contra chikungunya [prevista para o fim deste ano]. Os dois produtos estão projetando o Butantan no cenário internacional como nunca aconteceu na história. Talvez tenha acontecido lá atrás, quando o Butantan começou a fazer soro antiofídico. Aquilo gerou um impacto internacional no começo do século XX. Desde os anos 80, o Butantan vem investindo em vacinas e agora vai dar um salto através desses dois produtos, que vão se juntar a todo o portfólio do instituto.
Fonte: Valor Econômico