Por Anaïs Fernandes e Marsílea Gombata — De São Paulo
06/04/2023 05h01 Atualizado há 4 horas
O terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chega aos cem dias com poucas entregas relevantes no campo econômico, após esbarrar em questões de organização e articulação política. O ambiente doméstico para a atividade requer arrumação, enquanto o cenário externo também é desafiador, mas traz oportunidades, desde que o Brasil consiga “fazer a lição de casa” para atrair investimentos. Essa é a avaliação de professores da Fundação Dom Cabral (FDC) apresentada ao Valor.
“Nesses primeiros cem dias, o governo entregou muito pouco, basicamente aquilo que não dependia do Congresso, mudanças infralegais”, diz Bruno Carazza, professor associado da FDC e colunista do Valor. Ele cita como exemplos a revisão de decretos do ex-presidente Jair Bolsonaro e temas relacionados a governança e políticas públicas, como saúde, educação e meio ambiente. É a “reconstrução” do slogan do governo (“União e Reconstrução”), observa.
“Reformas estruturais mais complexas acabam sendo relegadas a um segundo plano ou diluídas no tempo, com grande risco de seu potencial acabar perdendo força, por concessões que o governo pode ter de fazer”, diz Carazza.
Ele pondera que há “boa vontade” sobretudo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aprovar um novo arcabouço fiscal. Por outro lado, diz sentir incômodo já que “Lula não defende a reforma tributária” em seus discursos. “Virou ‘a reforma do Appy’”, afirma, em referência ao secretário extraordinário do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. “Tem um lobby muito grande e forte vindo dos setores empresariais, e o governo está perdendo o controle da narrativa. Acredito na aprovação ainda, mas o risco de ela se diluir está cada vez maior. Talvez, vire uma montanha parindo um rato.”
A marca de cem dias de um governo e a ideia de que é preciso demonstrar trabalho acelerado nesse período, lembra Carazza, surgiu quando Franklin D. Roosevelt assumiu a Presidência dos Estados Unidos em 1933, após a Grande Depressão, e adotou uma série de medidas rápidas e ousadas para a recuperação econômica do país – o que deu origem ao “New Deal”.
“É uma data simbólica, não tem nada cravado em pedra que tem de fazer isso ou aquilo nos primeiros cem dias. Mas é usado como referência para esse início, em que o governo está embalado pela eleição e há boa vontade do Congresso e da sociedade”, diz Carazza. É um momento, segundo ele, favorável para se apresentar ao Parlamento o plano de governo. “Mas se a gente olhar a mensagem presidencial que Lula encaminhou ao Congresso, não tem medidas concretas.”
O “gogó” já ajudaria, segundo Mauro Sayar Ferreira, professor da UFMG e professor convidado da FDC. “A sinalização já funciona como política econômica, como uma atitude que tem impacto hoje na precificação de ativos e nas decisões dos agentes econômicos”, diz.
Apesar de os resultados concretos do governo na área econômica, até agora, serem “um pouco decepcionantes”, não chegam a surpreender, diz Carazza. “Viemos de uma eleição muito disputada. Lula chegou ao poder com uma base pequena. Já era esperado que ele teria dificuldades.”
O Congresso, frisa Carazza, está “parado”. “Não votou praticamente nada de relevante nos primeiros três meses do ano. O governo não sabe ainda o tamanho da base parlamentar que tem. Como não teve votação, essa base não foi testada e medida. O próprio governo está receoso desse processo”, diz.
Paulo Vicente Alves, professor da FDC, vê um cenário de “pato manco”. “O governo não consegue aprovar nada, está perdido. Até tem uma narrativa que acho correta, de se tornar um país de classe média, mas, na hora de conceber o ‘como’, não bate. É grave, se já é ‘pato manco’ antes dos cem dias, daqui para frente dificilmente melhora”, diz. “Já entrou com pouco capital político e não gastou nenhum ainda.”
Na sua avaliação, o governo “não está entendendo que o mundo mudou, que 2023 não é 2003”, diz Alves, em referência ao primeiro mandato de Lula, quando ele “nadava de braçada” com o Congresso, o mundo crescia e a China trazia dinheiro para o Brasil.
Em um modelo preditivo apresentado por Alves, apesar de o mundo caminhar, entre 2023 e 2026, para o auge da crise gestada nos anos anteriores – com a batalha comercial entre Estados Unidos e China, a pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia e inflação e juros elevados -, o cenário pode ser positivo para alguns países.
“Por 30 anos, vimos um ambiente favorável para a economia global, com inflação e juros baixos. Os investidores ignoraram os riscos e foram para a Ásia e o Leste Europeu em busca de custo baixo, assumindo que ditaduras poderiam ser confiáveis. Mas ditadores são ditadores, e a covid-19, a guerra na Ucrânia e a pressão chinesa sobre seus vizinhos mostram que o baixo risco não existe. O ambiente pode ser muito favorável para aqueles governos que souberem aproveitar”, afirma.
O modelo de Alves indica também que o ambiente externo ainda vai piorar antes de melhorar, e a crise e recuperação subsequente devem ser marcadas por rupturas tecnológicas. Isso vai exigir crescimento não só pela expansão do consumo, mas também pela capacidade de incorporar tecnologias. “Infelizmente, não vejo isso no governo atual. Vejo expectativas de expansão do consumo e base fiscal. É um governo descasado da realidade”, afirma Alves.
Carazza pondera haver “vantagens comparativas muito significativas” para o Brasil entrar na disputa por investimentos, como as fontes renováveis de energia. Por outro lado, diz, há uma série de problemas, e o país precisa assegurar que colherá os frutos dessa reconfiguração das cadeias globais com uma agenda microeconômica “muito desafiadora”.
“Precisamos regular esses mercados, o de carbono, por exemplo; ter uma regulação mais eficiente para a questão energética e de infraestrutura no geral, investindo em concessões e parcerias público-privadas (PPPs); lidar com o problema grave e crônico de capacitação da mão de obra”, exemplifica.
O Brasil precisa fazer a “lição de casa”, diz Alves, citando as reformas tributária e administrativa. “Estamos com uma baita oportunidade na mão, mas tem de fazer o dever de casa para melhorar o ambiente de negócios.”
O desafio, afirma Ferreira, será “o governo ter capacidade e vontade política para arbitrar as exceções” e de não ceder aos pedidos que estão pipocando. “Toda hora vemos grupos pedindo para serem tratados de forma diferente”, diz.
No âmbito fiscal, Carazza observa que a situação de desequilíbrio afeta câmbio, inflação e faz o país conviver com baixo crescimento.
Para Ferreira, o grande desafio macroeconômico está ligado à dívida pública e a uma boa gestão do gasto. “Em 2003, Lula fez um grande rearranjo para colocar no Orçamento diversos setores do PIB, ou seja, foi possível não dividir bola ou ter de arbitrar conflito distributivo. Parece que ele quer fazer o mesmo agora, mas nós não temos recurso, hoje, para isso”, afirma.
Também afetam o fiscal, mas passando por questões mais estruturais, discursos e comentários contínuos preconizando a revisão de “importantes avanços”, afirma Ferreira, citando discussões a respeito de privatizações, do marco do saneamento, da taxa de juros do BNDES (TLP) e da governança de estatais. “O governo está muito mais intervencionista do que eu imaginava. Eu não acreditava na intervenção nesse ritmo e velocidade. Mas, na verdade, o governo e membros do PT, em diversos momentos na campanha, falaram que fariam várias coisas”, diz Ferreira.
“Do ponto de vista externo e interno, o cenário é muito desafiador para o Brasil. E, quando olhamos a condução da política do governo nesses primeiros três meses, vemos que ele não está conseguindo atacar essas questões do modo adequado, desperdiçando a ‘lua de mel’ que normalmente se tem com a opinião pública e o Congresso”, resume Carazza.
Fonte: Valor Econômico
