Pinheiros oferece muito mais do que quarentões de gorro amarelo e cafeterias vendendo matcha latte. O bairro paulistano hoje nos fornece um retrato da concentração dos recursos da Lei Rouanet no Brasil —ele captou mais recursos via Lei Rouanet do que as regiões Norte e Nordeste juntas de 2014 a 2023.
O recorte foi feito por uma pesquisa publicada nesta quarta-feira (23), feita pelo Observatório Ibira 30 e pela Universidade Federal do ABC. O observatório é ligado ao Bloco do Beco, associação cultural periférica que atua na zona sul da capital paulista, no Jardim Ibirapuera.

O estudo se debruçou sobre as diferenças dentro de São Paulo, explicitando a concentração de recursos nos bairros mais nobres da cidade, mas também foi capaz de identificar diferenças no território nacional.
No ano passado, a capital paulista captou cerca de R$ 985 milhões, valor que supera o das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul somadas, que captaram R$ 840 milhões.
Em relação às discrepâncias internas em São Paulo, a pesquisa revelou que 90% da captação foi em bairros do centro expandido —como Pinheiros, Alto de Pinheiros, Jardim Paulista, Consolação, República, Bela Vista, Itaim Bibi, Vila Mariana, Moema e Perdizes.
Pinheiros teve uma captação per capita —isto é, o valor global dividido pela população do bairro— de R$ 18.694. Completam o pódio Bela Vista, com R$ 9.260, e Bom Retiro, com R$ 7.478. Como comparação, o valor de Perdizes foi R$ 896, a Mooca teve captação per capita de R$ 256, Cidade Tiradentes R$ 63 e Capão Redondo R$ 12. Já bairros como São Mateus, Itaim Paulista, Jaçanã e Parelheiros tiveram captação nula, segundo a pesquisa.
Os dez distritos que mais captaram em São Paulo foram Pinheiros, Jardim Paulista, Consolação, República, Bela Vista, Itaim Bibi, Vila Mariana, Moema, Alto de Pinheiros e Perdizes. Juntos, esses dez distritos nobres acumularam 61,1% do valor nominal da captação.
O fato de um projeto ser tocado por uma entidade localizada no centro expandido de São Paulo não significa necessariamente que esse projeto cultural será executado somente naqueles territórios. Gestores culturais ligados a grandes organizações também executam a partir de São Paulo projetos culturais pelo Brasil todo. Além disso, muitos dos projetos não resultam em espetáculos, mas podem se tornar publicações, gravações de discos ou uma infinidade de outros produtos culturais.
Allan Dantas, coordenador da pesquisa, afirma também que, embora alguns projetos possam ser geridos do centro, mas executados na periferia, o poder decisão sobre aquele produto cultural virá de alguém de um bairro nobre.
Marcelo Zarzuela faz parte do time de gestão do Bloco do Beco e atua como captador de recursos. “A pesquisa começou a partir conversa de boteco. A gente começou a se perguntar quem aqui do nosso entorno, da zona sul, que está acessando esse dinheiro? Aí a gente foi contando nos dedos da mão e não preencheu uma mão”, ele diz.
“A partir daí, a gente começou a mergulhar nos dados disponíveis pelo Ministério da Cultura e entender que, se a gente achava que era ruim, descobrimos que é muito pior”, diz Zarzuela. “A gente recebeu alguns parceiros que captaram no centro e executaram na periferia. O ponto é que ninguém da periferia é contratado para esse processo. Ou seja, o dinheiro circula onde o CNPJ captou”, diz.
Para a advogada especializada em cultura Aline Akemi Freitas, há um esforço para buscar a desconcentração de recursos por parte da do Ministério da Cultura no âmbito da Rouanet. Exemplos são programas como Rouanet das Favelas, Rouanet do Nordeste e Retomada Cultural RS. Há ainda, segundo ela, diálogo do ministério com algumas empresas que têm lançado editais para abarcar projetos com públicos e territórios menos beneficiados pelo mecanismo.
A advogada concorda que a própria natureza do mecanismo de incentivo fiscal da Rouanet colabora para que, muitas vezes, prevaleçam interesses do mercado, mas ela lembra que a raiz do problema pode estar na forma como a lei foi cultivada ao longo de seus mais de 30 anos.
A Lei Rouanet foi criada com três mecanismos de financiamento a ações culturais, mas só um deles vingou de fato —o fomento indireto pelo incentivo fiscal, que acabou virando sinônimo da lei.
Os outros dois mecanismos são o fomento direto pelo Fundo Nacional de Cultura, e o Ficart, que seria um fundo de investimento. “O Ficart nunca saiu do papel e o FNC sofreu muito contingenciamento ao longo da sua história, dificultando ou inviabilizando esse equilíbrio entre os mecanismos”, diz Freitas.
Segundo ela, o FNC deveria fazer esse equilíbrio de balança. A Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), que tem recursos do FNC, tem sido usada para tentar melhorar esses desequilíbrios, ela acrescenta.
No entanto, com a aprovação do projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2025, em março, a Aldir Blanc sofreu um corte orçamentário de 84%. O governo afirma que irá completar essa baixa com recursos vindos de outras fontes, com a abertura de créditos suplementares.
Fonte: Folha de S.Paulo