— Foto: Jorge William/Agência O Globo
O futuro presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo, enfrentará enormes desafios, mas terá oportunidade histórica de fazer escolhas estratégicas e uma gestão marcante. Para evitar fazer mais do mesmo, valeria a pena Galípolo refletir sobre o modus operandi do regime de metas para a inflação (RMI) no Brasil, do qual, desde sua adoção, em 1999, resulta uma das políticas monetárias mais conservadoras no rol de países cujos BCs norteiam-se por metas explícitas de inflação. Neste artigo, pretendo contribuir para o debate, oferecendo algumas sugestões para o aprimoramento do RMI no Brasil.
A teoria subjacente à opção por metas está associada ao chamado “Novo Consenso Macroeconômico”, que, prevalecendo até a crise global de 2008, resultou da surpreendente convergência de entendimento entre monetaristas, novos clássicos e novos keynesianos de que a política fiscal deveria se guiar pelo permanente equilíbrio orçamentário, a taxa de câmbio deveria flutuar para preservar o equilíbrio de longo prazo do balanço de pagamentos e a política monetária deveria se pautar pelo objetivo único de assegurar níveis de inflação baixos e estáveis. Como asseguravam Blanchard e Galí1, o crescimento econômico viria como uma “divina coincidência”.
Os economistas keynesianos mais alinhados com Keynes questionam o uso da taxa de juros como único instrumento para controle da inflação, sob a hipótese de que suas causas são múltiplas e não se trata, “sempre e em qualquer lugar”, de um fenômeno monetário, como afirmava Milton Friedman. Keynes, por várias razões, seria crítico ao modus operandi do RMI no Brasil, que tem sido bastante refratário ao crescimento econômico. Primeiro, porque, aqui, o BC, ao manejar sua função de reação, concede prioridade quase exclusiva ao objetivo de alcançar a meta de inflação pré-anunciada, ignorando a necessidade de adequá-lo ao objetivo de fomentar o crescimento econômico.
Segundo, porque a autoridade monetária sempre identifica níveis marginais de aumento da inflação esperada como desancoragem de expectativas, antecipando ciclos injustificáveis de aumentos de juros mesmo quando a inflação efetiva está em processo de convergência para a meta.
E, finalmente, porque, na situação atual, a meta de inflação de 3% e o reduzido intervalo de tolerância (de mais ou menos 1,5 ponto percentual em relação à meta) são incompatíveis com a estrutura da economia brasileira, com histórico, desde 1950, de complacência com níveis médios elevados de inflação (acima de 20% ao ano) e com cerca de 30% dos preços que compõem o IPCA indexados à inflação passada – portanto, pouco resilientes à variação da Selic.
Para apontar sugestões de aprimoramento do RMI no Brasil, cabe compará-lo com a prática internacional. Atualmente, 41 países adotam RMIs. Em artigo que será publicado no Cambridge Journal of Economics2, analisamos os RMIs em 38 países desenvolvidos e em desenvolvimento que adotam essa regra de política monetária. Ao comparar os arcabouços institucionais, constata-se que todos os BCs dispõem de autonomia operacional, mas, comparativamente aos países asiáticos e europeus em desenvolvimento, o sistema brasileiro é o mais rígido.
Enquanto no primeiro grupo os BCs, ao fixar a taxa básica de juros, calibram os objetivos de convergir a inflação para a meta e de assegurar o crescimento econômico, no Brasil, apenas o primeiro objetivo é prioritário. Além disso, enquanto a maioria dos países adota o “médio prazo” (sem detalhar horizonte temporal) para atingir a meta, nosso Banco Central opera, na prática, com base em “horizonte relevante” de cerca de 18 meses.
Fizemos também minucioso estudo econométrico para estimar os impactos dos RMIs sobre as taxas de juros reais, as taxas de câmbio reais e o crescimento no período 2000-2019. Os resultados foram bastante contrastantes. O Brasil operou com as mais elevadas taxas de juros reais de curto prazo (5,44% ao ano) e moeda sobrevalorizada na maior parte do período, diferentemente dos países em desenvolvimento europeus, que registraram taxas médias reais de juros em torno de 1,5% e moeda subvalorizada em termos tendenciais.
Em contraste com o Brasil, os países asiáticos mantiveram taxas de juros reais negativas e moedas domésticas subvalorizadas nas fases de boom, o que sugere compromisso das autoridades econômicas com o crescimento e com a preservação da competitividade doméstica e exportadora. Não por acaso, no período pré-pandemia (2000-2019), o Brasil registrou uma das taxas de crescimento mais baixas do mundo (2,38% a.a.), em contraste com as taxas bem mais elevadas observadas nos países asiáticos sob RMI (5,28% a.a.).
Essas disparidades sugerem que Galípolo deverá enfrentar enormes desafios, mas também abrem uma janela de oportunidade para que, como presidente do BC, venha a fazer história mediante a adoção de medidas que alinhem o modus operandi do RMI no Brasil à prática de BCs que têm sido capazes de assegurar a estabilidade monetária sem comprometer o crescimento econômico no longo prazo.
Minhas três sugestões nada têm de radicais e consistem em: propor ao Conselho Monetário Nacional (CMN) o aumento da meta de inflação para 4%, com intervalo de tolerância de mais ou menos 2 pontos percentuais, com faz o BC indiano; propor ao Congresso Nacional mudança do artigo 1º da Lei Complementar 179, de 24/2/2021 (que concedeu autonomia ao BC), para que se estabeleçam como objetivos fundamentais do BC assegurar a estabilidade de preços (o único objetivo, segundo a lei atual) e fomentar o crescimento econômico, a exemplo da maioria dos BCs no mundo; e substituir o Focus por metodologia abrangente de apuração de expectativas de inflação, à semelhança do Fed dos EUA, cujo “Índice de Expectativas Comuns de Inflação” resulta de pesquisa envolvendo todos os formadores reais de preços, como empresas, consumidores e participantes do mercado financeiro.
As mudanças sugeridas representariam uma guinada da prática do RMI no Brasil, pois não apenas confeririam maior autonomia ao BC em relação ao mercado financeiro, ampliando os graus de liberdade (policy space) para a fixação da taxa básica de juros em níveis mais moderados, como também incluiriam, nas obrigações de prestação de contas da autoridade monetária ao CMN, o objetivo de fomentar o crescimento, além do de assegurar a estabilidade de preços. Com essas medidas, Galípolo deixaria sua marca histórica, pois, sem comprometer a estabilidade monetária, haveria maior espaço para viabilizar a retomada e sustentação do crescimento e superar os ciclos curtos de crescimento de tipo “stop and go”, que têm sido a marca registrada da economia brasileira nas últimas décadas.
1) Blanchard, O., Galí, J. “Real wage rigidities and the New Keynesian model”. Journal of Money, Credit, and Banking 39, February, 2007, p. 35-65.
2) Nassif, A., Feijó, C., Araújo, E., Leão, R. “Inflation targeting and the real exchange rate trend: theoretical discussion and empirical evidence for developed and developing countries”. Cambridge Journal of Economics, 2024, no prelo.
André Nassif é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense e autor de “Desenvolvimento e Estagnação: o Debate entre Desenvolvimentistas e Liberais Neoclássicos”, agraciado com o Prêmio do Conselho Federal de Economia, em 2023.
E-mail: andrenassif27@gmail.com.
Fonte: Valor Econômico

