É incrível como às vezes a arte antecipa a realidade.
No episódio 11 da primeira temporada da série de TV israelense “Fauda“, um líder e um jovem militante do grupo palestino Hamas conversam sobre um atentado contra Israel. A ideia do dirigente é fazer um ataque inédito, de grande proporção.
O jovem diz que isso pode levar à guerra com Israel.
“Bem, no que você acha que estamos empenhados”, responde o dirigente. “Os judeus responderão com uma retaliação extremamente grave. Eles cometerão crimes de guerra tão sem precedentes que os países islâmicos vão intervir, inclusive o Irã. Quando os EUA decidirem intervir, será tarde demais. Por isso será o começo do fim dos sionistas.” E completa: “Este ataque mudará o equilíbrio de poder no Oriente Médio”.
“Mas haverá tantas vítimas”, pondera o jovem.
“Esse é o objetivo”, responde o líder.
“Estou falando do nosso lado, quando retaliarem”, insiste o jovem.
O líder apenas concorda mexendo com a cabeça.
Esse poderia ter sido o roteiro do conflito iniciado um ano atrás com o ataque inédito e de grande proporção do Hamas, que deixou 1.180 pessoas mortas em Israel. O governo israelense respondeu com uma retaliação “extremamente grave” e é acusado de cometer crimes de guerra. Houve muitas vítimas nessa retaliação, sendo mais de 40 mil palestinos mortos em Gaza.
Os Estados islâmicos não intervieram. Apenas o Irã e grupos apoiados pelos iranianos, como o Hezbollah (no Líbano) e os houthis (no Iêmen), entraram diretamente no conflito.
Em campanha eleitoral, o governo americano decidiu desde o início intervir em favor de Israel, ainda que discretamente. Têm enviado armas e apoio financeiro. Além disso, ajudou a defender Israel dos ataques do Irã com míssies e drones. E vem buscando evitar que outros países se envolvam, o que favorece Israel.
Por fim, o ataque mudou o equilíbrio de poder no Oriente Médio. Mas talvez não como os líderes do Hamas (os verdadeiros e o fictício, da série) esperavam. A reação de Israel foi brutal. Além de destruir boa parte da infraestrutura de Gaza, abalou por um bom tempo a capacidade de operação do Hamas. Agora, Israel está usando da mesma estratégia de retaliação para atingir o Hezbollah, no Líbano, que já perdeu boa parte de sua cúpula e deverá demorar para se rearticular.
O conflito acionou ainda o alerta nos países islâmicos sunitas em relação ao perigo representado pelo Irã. Os iranianos montaram um eixo de influência que inclui o Iraque, a Síria, o Líbano e o Iêmen (o Iraque pediu recentemente aos EUA que retirem suas tropas do país). Esse temor em relação ao Irã possivelmente está por trás da reação tímida dos países sunitas à violenta guerra de Israel em Gaza. Mais do que isso, a Arábia Saudita indicou, no final de setembro, que vai abandonar a política de corte de produção de petróleo. Essa decisão deve reduzir o preço da principal commodity mundial, o que prejudica todos os países produtores, mas especialmente a Rússia e o Irã, que estão sob sanções do Ocidente. Com isso, os sauditas parecem se alinhar novamente com os EUA , após um período de relações frias entre os dois países.
Na série de TV o atentado não acontece e, assim, não sabemos como terminaria o conflito que ele causaria. Na realidade, Israel tem carta branca dos EUA (pelo menos até as eleições americanas de novembro) para causar o maior dano possível ao Hamas e ao Hezbollah, que atuam diretamente nas suas fronteiras.
Continua improvável que ocorra uma guerra mais ampla envolvendo o Irã, pois os iranianos ainda não têm armas nucleares (estão perto disso). Mas esse risco cresceu consideravelmente no último ano. Possivelmente, Israel deseja uma escalada com o Irã, para forçar os EUA a intervir diretamente e resolver de uma vez o “problema iraniano”. Washington vem buscando evitar justamente essa escalada.
Isso significa que Israel está vencendo a guerra? Sim e não. Certamente Israel vai incapacitar o Hamas e o Hezbollah por um bom tempo. Mas, se o apoio iraniano continuar, esses grupos podem se rearticular e certamente buscarão armas cada vez mais letais. Israel ainda não apresentou um plano para pacificar Gaza e, agora, também o Líbano.
Mas qual é o objetivo do Hamas e do Hezbollah? Formalmente, eles resistem à “Nakba” (catástrofe), como chamam a criação de Israel. Isto é, rejeitam a existência do Estado judaico e querem destruí-lo. Como isso não é viável, o objetivo mais alcançável parece ser evitar qualquer tipo de normalização e paz entre árabes e israelenses. Não foi coincidência que esses dois grupos cresceram após os acordos de Oslo, a tentativa mais importante até hoje de achar um caminho para a paz entre Israel e palestinos. Também não foi coincidência que o Hamas atacou num momento em que Israel parecia estar perto de um acordo com a Arábia Saudita.
Vencer uma guerra significa alcançar os seus objetivos estratégicos, ainda que não haja uma vitória militar tradicional. Nesse sentido, é provável que o Hamas esteja alcançando os seus objetivos, como sugeriu o líder fictício da série “Fauda”. Mesmo que à custa de um imenso sofrimento do povo palestino. Povo este que não tem o direito de escolher o que deseja para si, já que vive, em Gaza, sob uma ditadura do Hamas.
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Fonte: Valor Econômico

