Os países europeus estão acordando para o perigo representado pela Rússia, mas o custo da construção de defesas robustas capazes de resistir a um possível recuo dos Estados Unidos é tão grande que ameaça o modelo social europeu pós-Guerra Fria.
Com o provável candidato republicano à Presidência Donald Trump questionando o futuro dos EUA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental) e as forças russas na ofensiva na Ucrânia, os líderes europeus estão alarmados com relação à ameaça existencial à segurança do continente.
A guerra nas proximidades e disputas com os EUA expuseram brechas nas capacidades militares da Europa que levarão anos para serem reparadas mesmo que os governos tornem os gastos militares uma prioridade política, algo que eles não fazem há décadas.
Na reunião desta quinta-feira (22), os líderes da União Europeia (UE) pretendem abordar as vulnerabilidades de defesa do bloco e sua ambição de expandir a indústria da defesa. Decisões dolorosas estão por vir.
O reforço da segurança da Europa exigirá gastos crescentes com a defesa em um momento em que muitos países europeus estão cortando seus orçamentos para lidar com altos níveis de endividamento e crescimento econômico fraco. Alcançar os gastos militares que alguns políticos e especialistas afirmam ser necessários é algo que forçará os membros europeus da Otan a começar a reverter os grandes aumentos de gastos sociais do pós-Guerra Fria.
“É preciso reformular o contrato social”, diz Gabrielius Landsbergis, ministro das Relações Exteriores da Lituânia, que alertou que a Rússia em algum momento atacará países da Otan se não for derrotada na Ucrânia.
A Europa precisará de pelo menos 20 anos para construir uma força capaz de reverter uma invasão russa da Lituânia e partes próximas da Polônia sem a ajuda dos EUA, aponta uma análise de 2019 do centro de estudos International Institute for Strategic Studies (IISS). O custo, segundo o instituto seria de US$ 357 bilhões, equivalente a mais de US$ 420 bilhões em valores atuais. Os aliados europeus da Otan deverão gastar US$ 380 bilhões com defesa este ano.
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Submarino nuclear russo da Frota do Pacífico participa de exercícios militares perto de Vladivostok, na Rússia — Foto: Ministério da Defesa da Rússia/AP
Embora muitos equipamentos russos tenham sido destruídos na Ucrânia, autoridades europeias afirmam que Moscou pode reconstruir suas forças armadas em poucos anos após o fim da guerra. Enquanto isso, a Otan esgotou seus próprios estoques de armamentos para manter a Ucrânia armada.
Como as forças armadas necessitam de anos para planejar, equipar e treinar forças, os governos europeus enfrentam um dilema imediato e difícil em relação aos gastos.
“Tudo se resume à vontade política combinada com uma capacidade de explicar ao público o que realmente precisamos fazer”, diz Anna Wieslander, diretora para o Norte da Europa do Atlantic Council, um think tank de Washington. “Isso parece ser mais fácil para os países mais próximos das fronteiras com a Rússia.”
Nos últimos anos, a Europa começou a reverter os cortes nos gastos militares feitos após o colapso da União Soviética em 1991. Durante a Guerra Fria, muitos membros da Otan gastaram cerca de 3% de seus PIBs com defesa. Esses gastos caíram nos anos subsequentes.
Depois que a Rússia tomou a Península da Crimeia da Ucrânia em 2014, membros da Otan concordaram em aumentar seus gastos para 2% do PIB até este ano. Muitos especialistas acreditam que os gastos europeus com defesa terão de chegar a 3% do PIB se os EUA começaram a se desligar do grupo.
A guinada seria enorme para alguns países. Para a Bélgica, comprar munições suficientes para combater uma invasão por poucas semanas é algo que custaria mais de US$ 5 bilhões, segundo o tenente-general reformado do Exército Marc Thys. A Bélgica é um dos países da Otan com os menores gastos militares, equivalentes a menos de 1,2% do PIB no ano passado.
Quando Thys ingressou nas forças armadas na década de 70, a Bélgica podia enviar 50 mil homens para a Alemanha. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, há dois anos, a Bélgica concordou em enviar 300 soldados para a Romênia. “Tivemos que fazer todos os esforços”, disse ele.
Thys afirma que a maioria dos governos da Europa ocidental enfrentará as dificuldades de aprender a sincronizar “a entrada de equipamentos, o ingresso de pessoal, a construção de infraestrutura e o treinamento dessas pessoas”.
A maioria dos países europeus pode aringir os 2% do PIB em gastos militares comprimindo outras despesas governamentais em menos de 1 ponto porcentual, segundo aponta um estudo recente do centro de pesquisas econômicas Ifo Institute da Alemanha.
Mas chegar a 3% significaria transferir vários pontos porcentuais dos gastos do governo para a defesa, afirma o Ifo Institute.
Há muito o Reino Unido gasta 2% do PIB com defesa, mas tem uma meta de 2,5%, que depende das condições econômicas. Para chegar aos 3%, o Reino Unido teria de aumentar os gastos militares em mais de US$ 40 bilhões, segundo Ben Zaranko, economista pesquisador sênior do Institute for Fiscal Studies do Reino Unido. Isso é duas vezes mais do que o Reino Unido gasta com o seu sistema judiciário.
“Penso que, de um modo geral, se quisermos gastar muito mais com defesa e não quisermos um Estado maior, o governo terá de começar a remover as responsabilidades do Estado”, afirma Zaranko.
Os cortes nos gastos com defesa da Europa desde a Guerra Fria geraram um dividendo com a paz de cerca de US$ 2 trilhões, segundo o Ifo. Este calcula que embora os gastos militares dos países da Otan tenham retornado aos níveis de 1991 com base nos preços de 2023, os gastos sociais mais que dobraram nesse período, passando a consumir metade dos gastos governamentais. Isso inclui planos de benefícios — como o aumento dos custos previdenciários em um continente envelhecido — que são politicamente difíceis de ajustar.
Essa pressão fiscal deixou a Europa dependente dos EUA no que diz respeito a capacidades militares vitais. Entre essas estão a defesa aérea, reabastecimento em voo, engenharia de combate, artilharia e munições, segundo especialistas. A Europa luta para movimentar suas forças através das fronteiras sem a ajuda dos EUA.
Washington também fornece ativos sofisticados de inteligência, vigilância e reconhecimento necessários para reações rápidas a ameaças. Também domina a digitalização das forças armadas que permite a elas se conectar e se comunicar com segurança durante conflitos.
“Temos forças armadas que parecem boas e resplandecentes, e plataformas que podem ser apresentadas para exportação, mas não estamos preparados para a guerra”, diz Gustav Gressel, pesquisador sênior de políticas que trabalha com defesa no European Council on Foreign Relations.
As deficiências da Europa manifestaram-se várias vezes em conflitos menores desde a Guerra Fria. Reino Unido e França ficaram sem bombas de precisão em combates na Líbia em 2011.
Alguns países europeus já estão mudando. A Polônia está gastando 4,2% do PIB com defesa, reforçando suas forças armadas, e embarcou em um grande esforço de compra de tanques, helicópteros, lançadores de foguetes e caças de última geração.
Suécia e Finlândia, que gastam muito com defesa, ingressaram na Otan, reforçando o domínio da organização na região do Báltico próxima da Rússia. A Otan reforçou suas tropas e equipamentos no flanco leste depois que a Rússia atacou a Ucrânia, e a Europa começou a reduzir algumas carências de equipamentos militares críticos fornecidos pelos EUA.
Mas confrontados com as eleições, a maior parte dos governos luta para resolver a questão dos orçamentos militares. A instável coligação que sustenta o governo da Alemanha, que realiza eleições no ano que vem, não disse como irá aumentar os gastos para 2% ou mais, assim que seu fundo especial de defesa de US$ 109 bilhões se exaurir em 2027.
Este mês no Reino Unido, quando o orçamento do governo pré-eleição mal elevou os gastos militares em termos reais, alguns ministros vieram a público com apelos para um aumento dos gastos já.
Os militares europeus têm dificuldades até mesmo para começar a abordar a forma como a Otan poderá operar sem um alto nível de apoio dos EUA, segundo Edward Arnold, pesquisador de segurança europeia do Royal United Services Institute no Reino Unido.
“Nas sessões oficiais de planejamento não haverá mudanças”, diz ele. “Mas quando forem tomar café nos intervalos, eles provavelmente dirão: ‘Meu Deus, como seria se estivéssemos fazendo isso sem os americanos?’” (Colaborou Daniel Michaels — Tradução de Mario Zamarian)
Fonte: Valor Econômico

