A ponte do social com o ambiental também tem ficado clara, na opinião de especialistas
Por Naiara Bertão, Prática ESG — São Paulo
Para muitos especialistas, o termo ESG, sigla em inglês para se referir a questões ambientais, sociais e de governança corporativa, é ingrato ao compartimentar as três dimensões, dando a falsa sensação de que elas são desconectadas, quando, na verdade, elas estão intrinsecamente ligadas. E em 2024, cada vez mais a conexão da dimensão humana (o “S”) com as demais ficará clara, ainda que não seja a prática mais comum hoje nas empresas, afirmam.
“Não há encontro empresarial que não traga a visão de que as pessoas são importantes. A realidade, contudo, nem sempre se harmoniza aos discursos”, aponta Edson Barbero, da FEA-USP e professor do curso Stakeholders e ESG da FIA, ao destacar que muitas empresas falam que se preocupam com funcionários, fornecedores e sociedade, mas a prática é bem mais superficial do que a teoria.
Sonia Consiglio, especialista em Sustentabilidade e SDG Pioneer do Pacto Global da ONU comenta que sentiu falta de uma atenção maior ao social no recém-divulgado relatório de riscos do Fórum Econômico Mundial. “Não dá para falar em meio ambiente sem falar das pessoas. Não podemos deixar de fora a pauta social, dos direitos humanos. Não tem como fugir dela”, reitera.
Na opinião de especialistas ouvidos pelo Valor, fica claro que a pauta social deixou, já há algum tempo, de se limitar à filantropia corporativa, doações para organizações parceiras e ao Dia do Voluntário no calendário anual da empresa. Os temas sociais estão se tornando mais complexos, profundos e interconectados com as oportunidades e riscos para os negócios.
Stakeholders, no plural
O consumo de produtos sustentáveis tem crescido em vários países do mundo, reflexo da preocupação cada vez maior dos consumidores, em especial os mais jovens, com o uso de recursos naturais, sua atuação social, a ética corporativa e por aí vai. Por isso, ouvir este importante stakeholder – o cliente – pode ser um diferencial de mercado.
“Na vertente da sustentabilidade, a relação de consumo vem mudando muito rapidamente para um consumo mais consciente, que busca a sustentabilidade por meio do uso eficiente dos recursos, principalmente, os naturais”, pontua Rosana Pádua, conselheira do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças de São Paulo (IBEF-SP).
Mas ela lembra que outro stakeholder – o fornecedor – também terá papel – e voz – cada vez mais relevantes e deve ocupar uma boa parte da estratégia do “S” das companhias. “O escrutínio das cadeias das organizações também deve estar no topo da pauta de gestores e conselheiros, pois companhias sem essa preocupação tendem a estar fora do mercado em muito pouco tempo”, diz.
A advogada Fernanda Tanure, sócia da Área Ambiental e Mudanças Climáticas do escritório BMA, lembra que as novas regulações da União Europeia para importações, por exemplo, ataca tanto a frente ambiental quanto a social. Isso porque não apenas coloca mais barreiras para a entrada de produtos vindos de áreas desmatadas, como também exige que as companhias observem – e provem – que estão atentos aos direitos humanos (trabalho infantil, análogo a escravo etc.) e das comunidades indígenas – de suas operações diretas, quanto nas indiretas, de parceiros.
“Essa norma corrobora a tendência mundial de avaliação do produto ou da empresa por toda a cadeia de fornecimento, não apenas individualmente”, diz Tanure. Ela cita que, no Brasil, as cadeias de gado, óleo de palma, soja, madeira, cacau, café e borracha, assim como seus subprodutos (chocolate, móveis de madeira e papel impresso) devem ser as primeiras a serem pressionadas.
No último Fórum de Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra (Suíça), em novembro passado, a palavra ambiental, não tão citada nas edições anteriores, ganhou protagonismo. Com as consequências evidentes de que o aquecimento global afeta especialmente populações mais vulneráveis, mulheres e negros, a maioria residentes em países em desenvolvimento, o elefante branco da justiça climática se tornou um mamute. E as empresas começam a ser cada vez mais pressionadas para se preocuparem com isso.
Porta para dentro
Está ainda cada vez mais evidente a conexão da urgência climática com as políticas de bem-estar e qualidade de trabalho dos funcionários. Estudos têm evidenciado que o calor extremo provoca riscos para a saúde, como insolação e exaustão, agrava doenças e, consequentemente, sobrecarrega os sistemas de saúde pública e privada.
O calor intenso faz vítimas fatais. De acordo com o Bureau of Labor Statistics dos Estados Unidos, 36 trabalhadores morreram em 2021 e 56 em 2020 devido ao calor, a maioria em empregos como construção civil, agricultura e entrega de encomendas (delivery). Mas, há quem acredita que esta conta é bem maior. o Public Citizen, um grupo de defesa dos direitos do consumidor, estima que o calor extremo contribui para entre 600 e 2.000 mortes por ano e 170.000 feridos nos locais de trabalho – apenas nos EUA.
Em 2019, a Organização Internacional do Trabalho previa que 2,2% do total de horas de trabalho em todo o mundo (equivalente a 80 milhões de empregos em tempo integral) sejam perdidos por ano, seja por causa do calor intenso, em parte porque os trabalhadores ficam mais lentos, menos produtivos, neste ambiente. As perdas financeiras até 2030 foram estimadas em US$ 2,4 bilhões com isso.
Mas não só o termômetro que interfere na produtividade do trabalhador e em prejuízos financeiros às empresas. Outro tópico que entrou de vez na agenda social do ESG é o de saúde mental dos funcionários.
Pesquisa recente da Pipo Saúde com quase 9 mil trabalhadores de diferentes níveis hierárquicos, divulgada pelo Valor, mostra que 48% têm risco de saúde mental, 44% sofrem de insônia, 60% são sedentários e 60% têm sobrepeso e obesidade. Soma-se a isso que, pelos dados do Ministério da Previdência Social, em 2023, foram concedidos 288.865 benefícios por incapacidade devido a transtornos mentais e comportamentais no Brasil, 38% a mais do que em 2022, quando foram concedidos 209.124 benefícios. Em 2021, foram 200.244. Ou seja, os afastamentos por saúde mental estão aumentando.
“Devido ao constante crescimento de casos e à nova norma do Ministério da Saúde (Portaria GM/MS nº 1.999, de 27.11.2023), que passa a considerar diversas doenças mentais como ocupacionais, os empregadores devem ficar atentos cada vez mais na relação interpessoal e prover mais cuidado aos colaboradores”, lembra Tanure, do BMA.
Transparência na diversidade
O tratamento de casos de assédio, assim como políticas mais intencionais de igualdade de gênero e raça, e inclusão de minorias e grupos minorizados, seguem como fortes tendências.
“Cada vez mais os clientes têm exigido de seus fornecedores, em todas as áreas, políticas de diversidade e inclusão, seja para efetuar a contratação ou para negociar valores. Ambientais inclusivos se mostram mais lucrativos, uma vez que a diversidade traz olhares distintos e complementares”, diz Tanure, do BMA. Ela acrescenta que a paridade de gênero, com igualdade salarial, também continua como um tema relevante para as instituições e deve ganhar destaque em 2024.
Quando o foco se volta ao ambiente interno, ou seja, aos funcionários, práticas de diversidade, equidade e inclusão viraram um “must do” (tem que fazer). O escrutínio social e a cobranças de investidores e outros órgãos, como a própria Comissão de Valores Mobiliários (CVM), têm elevado o nível de transparência sobre as ações das companhias e os resultados de suas políticas de gênero, raça e outros grupos minoritários. Mas, mesmo assim, o caminho é longo e a batalha não está nem perto de ser ganha.
O Panorama Mulheres 2023, estudo feito pelo Talenses Group com o Insper, aponta que as mulheres eram, em 2019, 13% dos CEOs do Brasil, 23% dos vice-presidentes e 16% dos conselheiros. Em 2022, houve uma leve melhora deste quadro: 17% CEOs, 34% de VPs e ocupar 21% de assentos em conselhos de administração.
Ponte com ambiental
“O desenvolvimento de atividades econômicas traz impactos sociais que precisam ser medidos, podendo ser positivos ou negativos, de pequena ou grande escala”, aponta Yuri Marinho, fundador e CEO da ECCON Soluções Ambientais.
Ele dá como exemplo uma grande obra de construção civil, que pode movimentar centenas ou milhares de pessoas, que necessitarão, no mínimo, de moradia, alimentação, transporte e lazer. “Não havendo atendimento a essas demandas, o impacto tende a ser negativo, com perdas tanto para esses trabalhadores quanto para a comunidade do entorno da obra”, aponta.
O cuidado com as pessoas já é tratado na legislação sobre o processo de licenciamento ambiental da construção civil, com regras e protocolos detalhados para análise dos impactos socioambientais. Também já constam medidas de compensação e mitigação de riscos e impactos.
Mas as exigências vão além da construção civil. Qualquer projeto de conservação ambiental, restauração de mata nativa e/ou de agricultura sustentável – três negócios da economia verde que tendem a crescer no Brasil – vai precisar medir seu impacto e traçar um plano de ação para envolver o social.
Os projetos de geração de créditos de carbono, também em ascensão com a possibilidade da regulação do mercado, por sua vez, também precisam olhar para as pessoas que estão dentro e fora do território, como determinam as metodologias internacionais. Inclusive, no mercado voluntário de carbono, quem faz um trabalho mais intenso com a comunidade, consegue até vender mais caro o crédito, pois ele traz mais benefícios.
“As certificadoras exigem que o projeto demonstre análises socioambientais e indicadores que demonstrem os impactos positivos e negativos”, explica Marinho. Ele pontua que a metodologia se assemelha ao de um licenciamento ambiental, mas pode envolver mais demandas, como estudo da capacidade de permanência do projeto (longevidade), sua adicionalidade (o quanto contribui para o meio ambiente), biodiversidade, dentro outros tópicos.
Um dos programas mais conhecidos nesse sentido é o chamado Climate, Community & Biodiversity Standard (CCB), da certificadora Verra. A verificadora confere o selo CCB a projetos que cumpram requisitos mínimos relacionados a questões climáticas, benefícios a comunidades locais e biodiversidade.
Para Marinho, o Projeto de Lei 2148/2015, que pretende regular o mercado de carbono no Brasil e aguarda análise no Senado, é bem-vindo, mas, ressalva, que ele precisará considerar as particularidades do Brasil na hora de determinar a aplicação das regras de análise socioambiental, principalmente em locais onde vivem comunidades tradicionais, populações indígenas e demais grupos sociais que têm proteção especial.
Fonte: Valor Econômico