Em comparação a outras áreas, a ciência tem sido lenta para lidar com desigualdades, e descobertas científicas podem levar décadas
Por Hannah Kuchler — Do Financial Times
22/04/2023 08h00 Atualizado há 2 dias
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Anorexia é tema da jornalista Hadley Freeman, ela mesma vítima do distúrbio — Foto: BSIP/Universal Images Group via Getty Images
Nas primeiras páginas de “Good Girls”, Hadley Freeman faz uma lista das 75 teorias que médicos, terapeutas e gente de outras áreas desenvolveram para explicar por que ela sofria de anorexia quando adolescente. A primeira da lista: seu parto por cesárea, que, segundo um psiquiatra, a fazia “sempre procurar a saída mais fácil”.
Muitas das outras hipóteses se contradizem: ou seus pais lhe davam demasiado ou não lhe davam o suficiente; ou ela era inteligente demais ou não era inteligente o suficiente para a escola; ou era obcecada por sexo ou tinha aversão a ele. Ela termina a lista com uma pergunta que tenta responder ao longo do livro: “Como se resolve um problema do tipo ‘menina adolescente infeliz’?”.
Em “Good Girls”, a jornalista e também autora de “The House of Glass”, um livro de memórias sobre sua família judia, disseca camada a camada os fatores que tiveram influência em seu distúrbio alimentar. Entrelaçando sua história pessoal, conversas com outras pacientes anoréxicas e entrevistas com especialistas, ela mostra as complexas condições biológicas e sociais que abrem o caminho para essa doença de compreensão “escorregadia”.
Freeman rejeita as teorias simplistas em revistas de moda ou em redes de relacionamento social online que atribuem a anorexia a uma obsessão por magreza, e é enfática ao afirmar que o distúrbio não se trata da questão da comida. Na verdade, olhando para o passado, para as mulheres celebradas como mártires por terem passado fome, a anorexia é “uma doença surpreendentemente constante em sua mensagem e expressão”, diz a escritora.
A doença “tem a ver com o medo da sexualização e o medo da feminilidade; tem a ver com tristeza e raiva e a crença de que você não pode ficar triste e com raiva, porque deveria ser perfeita; e tem a ver com se sentir completamente sobrecarregada pelo mundo, então você cria um mundo novo e menor, com uma regra fácil de entender: não coma”.
As meninas anoréxicas em geral desenvolvem o distúrbio na puberdade, muitas vezes com medo do que seu corpo esteja se tornando e dos sacrifícios que a sociedade agora espera delas. Algumas garotas conseguem rejeitar essas ideias e ideais, mas Freeman se descreve como “uma pequena conformista”, que não conseguia rejeitá-las.
Freeman consegue transformar este conto trágico e desgastante em uma história emocionante, capturando uma experiência que muitos acham difícil de entender. Ela descreve como fez tantos polichinelos a ponto de literalmente abalar os alicerces da casa da família e como levou uma câmera para o hospital para registrar closes de seus “tendões assombrosamente tensionados”. Pode ser doloroso ler as anotações de seu diário, como quando ela se consola ao ter suas costas com os ossos sobressalentes enfaixadas no hospital, um sinal de que, apesar do programa para alimentá-la, ela ainda estava “esquelética em alguma parte”.
Entre os 14 e os 17 anos, ela passou a maior parte do tempo em hospitais, onde os médicos tendiam a dar mais atenção aos números da balança do que a como ela se sentia. Ela descreve que a anorexia, em sua intenção, é “muitas vezes inadvertidamente feminista”, por rejeitar a sexualização que uma sociedade patriarcal espera das mulheres, mas diz que os efeitos da doença são “antifeministas”, por reduzirem as mulheres a um estado “indefeso, autodestrutivo e infantil”.
Isso inclui dar a alguns médicos e enfermeiros um poder inapropriado sobre pacientes, em sua maioria, mulheres. O primeiro médico dela foi posteriormente dispensado por um “relacionamento confuso e secreto” com uma paciente. Freeman não sofreu abuso nas mãos dele, mas atribui à negligência dele a perda de uma oportunidade vital, a de intervir nos estágios iniciais da doença. Por fim, com a ajuda de uma terapeuta, ela ficou bem o suficiente para receber alta. Não foi, no entanto, uma recuperação milagrosa, já que ela passou a sofrer de outro problema de saúde mental, um comportamento obsessivo-compulsivo.
“Good Girls” mostra o ponto de vista da paciente de uma doença muitas vezes incompreendida pela sociedade, pela profissão médica e até pela ciência como um todo, como atesta a lista de hipóteses obtusas de Freeman. No entanto, ela gasta pouco tempo explicando por que a compreensão de nossa biologia é tão fraca. A anorexia é a mais mortal dos distúrbios psiquiátricos – e ainda não há medicamentos aprovados para tratá-la.
Isso se encaixa em um contexto mais amplo, de falta de investimento para tentar compreender a saúde da mulher, um assunto que a socióloga Marieke Bigg aborda de frente em “This Won’t Hurt: How Medicine Fails Women”. Ela alfineta os especialistas médicos e científicos por não ouvirem as mulheres sobre seus problemas e por não desenvolverem tratamentos.
Com base no trabalho de Caroline Criado Perez em seu sucesso de vendas “Mulheres invisíveis”, sobre como as mulheres lutam para viver em um mundo projetado para homens, Bigg critica o “ponto de vista ‘biquíni’ da biologia”, que presume como única diferença entre os gêneros seus órgãos reprodutivos. “No que diz respeito à medicina, a vida de uma mulher começa quando a menstruação começa e termina quando ela dá à luz”, ironiza.
Em alguns casos, o impacto é claro. Estudos sugerem que as mulheres têm 59% mais chances de receber o diagnóstico errado no início de um ataque cardíaco, já que os médicos (e os telespectadores) aparentemente sabem mais sobre os sintomas masculinos do que sobre os femininos. Provavelmente, existem muitos outros exemplos ainda a descobrir. É difícil escrever um livro sobre algo que as pessoas ainda não pesquisaram.
Mesmo no campo da biologia reprodutiva, Bigg diz que a saúde da mulher carece do financiamento adequado. Menos de 2,1% das pesquisas com financiamento público são dedicadas unicamente à saúde reprodutiva da mulher. Bigg faz uma comparação gritante entre a endometriose, uma condição dolorosa em que tecido semelhante ao revestimento do útero cresce em outras partes do corpo, e o diabetes. Ambos afetam 10% das pessoas e impactam seriamente a qualidade de vida, mas o financiamento para pesquisas sobre diabetes é 20 vezes maior.
“This Won’t Hurt” chega a seu ápice quando destaca bem essas disparidades, mas patina quando Bigg tenta descrever sua própria experiência de se sentir incompreendida pelo establishment médico. Ela desconfia dos médicos, mas é vaga em esclarecer se os médicos dela cometeram erros médicos ou de empatia.
Ela encerra o livro analisando como as tecnologias futuras – por exemplo, os protótipos de úteros artificiais, nos quais fetos podem crescer fora do corpo da mulher – podem ser usadas para o bem ou para o mal; para empoderar ou subjugar as mulheres. Ela tem razão em criticar a equipe holandesa que trabalha no dispositivo por não incluir nenhuma mulher. Mas vai longe demais quando diz que esses dispositivos se assemelham a “testículos pendentes” mais do que à forma de um útero e quando diz que correm o risco de se tornar “uma fantasia masculina, como, possivelmente, o resto da medicina tem sido”.
A medicina não é ficção, mas é a história de homens dominando a ciência, e o financiamento à medicina significa que existem enormes lacunas em nossa compreensão da biologia feminina. Em comparação a outras áreas, a ciência tem sido lenta para lidar com essas desigualdades, e descobertas científicas podem levar décadas.
No entanto, investir na pesquisa da saúde da mulher será mais fácil do que enfrentar as traiçoeiras causas sociais de um distúrbio como a anorexia. Freeman termina com seus desejos, como o de que se diga às garotas que seus corpos não são uma demonstração externa de quem elas são e que elas não precisam se tornar pequenas para se expressar, e que existem inúmeras formas de ser uma garota. A lista parece simples, mas, apesar das grandes mudanças rumo à igualdade de gênero nos últimos 50 anos, a sociedade ainda sobrecarrega as mulheres com expectativas que deixam algumas delas desesperadas para tentar escapar. (Tradução de Sabino Ahumada)
Good Girls Hadley Freeman, Simon & Schuster, 276 págs., R$ 75,04 (Kindle)
This Won’t Hurt Marieke Bigg ,Hodder & Stoughton, 289 págs., R$ 50,59 (Kindle)
Fonte: Valor Econômico